postado em 30/08/2019 04:06
Durante 744 dias, a Colômbia experimentou a paz, desde que a maior guerrilha do país entregou os fuzis e completou a desmobilização. Horas depois da divulgação de um vídeo no qual Iván Márquez, ex-vice-líder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), e os ex-comandantes Jesús Santrich e Hernán Darío Velásquez (vulgo ;El Paísa;) anunciam a retomada das armas, o presidente Iván Duque prometeu derrotar o terrorismo, acusou o colega venezuelano Nicolás Maduro de abrigar ;o grupo narcoterrorista;, anunciou uma recompensa de 3 bilhões de pesos colombianos (cerca de R$ 3,5 milhões) por cada um dos ;delinquentes; da gravação e ordenou a captura dos ex-rebeldes.
Com tom de voz grave, Duque discursou em rede nacional de TV e avisou que a nação ;não aceita ameaças;. ;Nós devemos ter a clareza de que não estamos ante o nascimento de uma nova guerrilha, mas frente a ameaças criminosas de um bando de narcoterroristas, que conta com abrigo e apoio da ditadura de Nicolás Maduro;, declarou, ao revelar que conversou com Juan Guaidó, presidente autoproclamado da Venezuela, a quem pediu ajuda para perseguir os ;criminosos;. Ontem, os Estados Unidos também frisaram que grupos rebeldes na Colômbia têm o apoio de Caracas.
Duque cobrou da Força Alternativa Revolucionária do Comum (Farc), partido criado pelas lideranças da guerrilha maoísta, a imediata expulsão dos integrantes que aparecem no vídeo ; entre eles, o deputado Santrich, que se encontra foragido. Também exortou Patricia Liñares, presidente da Jurisdição Especial para a Paz, a retirá-los da chamada justiça transicional. ;Ordenei a formação de uma unidade especial para a perseguição destes criminosos com capacidades reforçadas de Inteligência, investigação e mobilidade em todo território colombiano;, afirmou. ;Aqueles que escolherem a rota da criminalidade sofrerão todo o peso da lei.; Segundo o presidente, ;este é um momento para a unidade da Colômbia;. ;Os únicos inimigos da paz são os que pretendem, com o terrorismo, atentar contra o país. (;) Que os delinquentes fiquem notificados: a Colômbia derrotará o terrorismo.;
No vídeo de 32 minutos, Márquez aparece vestido de verde militar enquanto lê um comunicado, diante de uma faixa com a inscrição ;Enquanto houver vontade de luta, haverá esperança de vencer. Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Farc-EP; ; nome original da guerrilha. Ele está ao lado de Santrich, que usa boina e segura um fuzil, e de outros combatentes armados. ;Anunciamos ao mundo que começou a segunda Marquetalia (o local onde nasceram as Farc), sob o amparo do direito universal, que ajuda todos os povos do mundo a se levantarem contra a opressão;, disse o número 2 das Farc, ao citar o berço histórico da rebelião armada. ;A armadilha, a traição e a deslealdade, a modificação unilateral do texto do acordo, a violação dos compromissos por parte do Estado, as assembleias judiciais e a insegurança jurídica nos forçaram a voltar para a montanha. Nunca fomos vencidos, ou derrotados ideologicamente. É por isso que a luta continua.; Márquez também explicou que o novo grupo armado coordenará esforços com o Exército de Libertação Nacional (ELN) e com ;camaradas que não dobraram suas bandeiras;.
Indulto
O ex-presidente Juan Manuel Santos, artífice do acordo com a guerrilha, minimizou o anúncio. ;90% das Farc seguem no processo de paz e devem continuar cumprindo com ele. Os desertores têm que ser reprimidos com contundência. Não se detém a batalha pela paz!”, escreveu. Por sua vez, o antecessor Álvaro Uribe, opositor ferrenho de qualquer negociação com os rebeldes, advertiu: ;Aqui não houve paz, mas indulto para alguns responsáveis por crimes atrozes a um alto custo institucional;. Em nota, o partido Farc alegou não compartilhar nenhum dos termos expostos no vídeo. ;Proclamar a luta armada na Colômbia de hoje constitui um equívoco delirante;, assegurou.
Professor da Universidad Externado de Colombia (em Bogotá), Andrés Macías Tolosa classificou como ;muito infeliz; a decisão de Márquez e de Santrich. ;Eles tentam dar uma justificativa política à luta armada, que tem sido muito permeada por outras economias ilegais que a deslegitimam;, afirmou ao Correio.
Para o estudioso, a reação de Duque de lançar uma ofensiva era ;esperada;. ;Ao se declararem em rebelião, os ex-líderes das Farc voltam a ser considerados ameaça ao Estado. O principal dilema do presidente será seguir as diretrizes de Uribe ou fortalecer o acordo de paz, para impedir que outros desmobilizados sejam recrutados por Márquez e por Santrich;, disse.
O ex-deputado Sigifredo López (leia Depoimento), refém das Farc por 6 anos e 10 meses (2002-2009), admitiu à reportagem que Duque agiu corretamente. ;É o que o Estado deve fazer: perseguir os violentos.; Ele descarta novo conflito por entender que os rebelados não têm capacidade militar para derrotar o governo. ;Seria uma guerra de guerrilhas em uma geografia e com complexidades especiais.; O ex-presidente Ernesto Samper (leia Duas perguntas para) alertou ao Correio que os fatores que permitiram o conflito estão vigentes. ;Não se acabou com o tráfico, que financia a violência, nem com a ausência do Estado em muitas áreas do país. Seria possível um novo conflito em um prazo de cinco a 10 anos.;
Trechos
Veja partes do vídeo intitulado Até que haja vontade de luta, haverá esperança de vencer, em que Iván Márquez declara guerra ao Estado colombiano
;Tudo isso, a armadilha, a traição e a perfídia, a modificação unilateral do texto do acordo, o descumprimento dos compromissos por parte do Estado, as montagens judiciais e a insegurança jurídica nos forçaram a voltar ao monte.;
;Nunca fomos vencidos nem derrotados ideologicamente. Por isso, a luta continua. A história registrará em suas páginas que fomos obrigados a retomar as armas.;
;Anunciamos ao mundo que começou a segunda Marquetalia (o local onde nasceram as Farc, há mais de meio século), sob o amparo do direito universal, que ajuda a todos os povos do mundo a se levantarem em armas contra a opressão.;
"Ordenei a formação de uma unidade especial para a perseguição destes criminosos com capacidades reforçadas de Inteligência, investigação e mobilidade em todo território colombiano;
;Os únicos inimigos da paz são os que pretendem, com o terrorismo, atentar contra o país. (;) Que os delinquentes fiquem notificados: a Colômbia derrotará o terrorismo;
Iván Duque, presidente da Colômbia
Duas perguntas para
Ernesto Samper Pizano, presidente da Colômbia entre 1994 e 1998
Como o senhor vê a decisão de Iván Márquez e de Jesús Santrich de retornar às armas?
Essa decisão é dos fatos mais graves ocorridos desde o momento da assinatura da paz, em dezembro de 2016. Ela tem antencedente nas divergências internas das Farc sobre a culminação do processo. No entanto, o seu gatilho foi o tratamento dado ao senhor Santrich, quando praticamente foi submetido a uma operação de captura para associá-lo ao narcotráfico e extraditá-lo aos Estados Unidos. Tal circunstância e a forma como foi manejada criaram um grande medo entre as Farc de que um dos compromissos fundamentais dos Acordos de Havana, que consistiam em não extraditar seus comandantes, começava a ser ignorado. Santrich é uma pessoa bastante popular. Tal fato grave deveria ser abordado com tranquilidade e com serenidade, para que não afetasse substancialmente a continuação do processo de paz.
O plano de paz de Juan Manuel Santos fracassou?
Absolutamente. Está claro que, com a mudança de governo do presidente Santos para o presidente Duque, temas muito sensíveis que integram os acordos celebrados em Havana ; as terras, as proteção da vida, os líderes sociais, a substituição social dos cultivos e a proteção dos direitos humanos ; sofreram uma deterioração de ordem legal, política e orçamentária. Está claro que, aquilo que podemos chamar de coluna vertebral dos acordos (uma jurisdição especial de paz) segue firme no compromisso de conseguir que este país passe do conflito ao pós-conflito. (RC)
Depoimento
Decepção entre
as vítimas
do conflito
;Nós, vítimas das Farc, recebemos essa decisão com muita perplexidade e decepção. Temos dado tudo de nós neste processo para se alcançar a paz e a reconciliação dos colombianos. Sofremos na própria carne o conflito. Perdemos entes queridos. Temos sofrido como ninguém as consequências da guerra e da polarização. Saímos às ruas para lutar pelos acordos de paz. Também o defendemos nos meios de comunicação e em todos os espaços democráticos.
Temos defendido tudo o que contribua para o processo de reconciliação. Agora, um dos negociadores dos acordos de levanta contra a sociedade e retorna às armas. Para mim, isso não parece coerente. Iván Márquez pode ter se sentido encurralado pelo fato de o próprio sobrinho ter testemunhado contra ele nos Estados Unidos.
É preciso levar em conta que Márquez e Jesús Santrich representam apenas 10% do efetivo das Farc. Cerca de 20% da guerrilha ficou alijada do processo. Os 70% restantes assumiram o compromisso com a paz ratificado por Timoleón Jiménez ;Timochenko; e por Pablo Catatumbo. Ou seja, é importante ressaltar que apenas 30% da Farc ficaram de fora dos acordos e não têm capacidade militar para derrotar o Estado.;
Sigifredo López, x-deputado colombiano antido refém pelas Farc or 6 anos e 10 meses
Eu acho...
;Toda ação ou ameaça de uso ilegítimo da força sempre será uma ameaça à paz e à segurança. Isso pode influenciar outros ex-combatentes que estão na rota da reincorporação à vida civil. No entanto, acho que a rebelião de Iván Márquez e de Jesús Santrich se alimentará daqueles guerrilheiros que já são dissidentes, assim como de novos ;recrutas;, muitos deles de grupos delinquentes organizados.;
Andrés Macías Tolosa, professor emérito da Universidad Externado de Colombia (em Bogotá)