Durante um comício em 2008, ele avisou: ;Somente Deus, que me escolheu, me removerá;. O único presidente conhecido pelo Zimbábue desde a independência, em 1980, se comparava a Adolf Hitler e se considerava superior a Jesus Cristo. Com a saúde debilitada, o déspota que governou com mão de ferro se viu forçado a renunciar em 21 de novembro de 2017. Aos 95 anos, Robert Mugabe saiu definitivamente de cena às 10h40 de ontem (23h40 de quinta-feira no horário de Brasília), no Hospital Gleneagles, em Cingapura, após meses de internação. Adam Molai, sobrinho do ex-líder, relatou que ele morreu ;cercado pela família;. ;Estamos consternados por essa perda. Mas também celebramos a vida de uma lenda. Ele foi uma lenda viva. Um pan-africanista. Ele trouxe o país do colonialismo à liberdade que tivemos;, declarou. A maioria dos 14 milhões de zimbabuenses não compartilhavam dessa visão. Para muitos, Mugabe foi um déspota que perseguiu, torturou, promoveu uma matança de rivais e arruinou a economia do Zimbábue ; 72,3% da população vivem abaixo da linha de pobreza.
Morador de Bulawayo (a segunda cidade mais populosa do país, distante cerca de 350km da capital, Harare), o autônomo Nhlanhla Dube, 36 anos, não escondeu a felicidade pela morte de Mugabe. Ele contou ao Correio que o avô foi assassinado pela milícia do ex-presidente. ;Nhlanhla significa ;sortudo;. Fui batizado com esse nome porque minha mãe sobreviveu à matança. Meus pais eram simpatizantes da União do Povo Africano do Zimbábue (Zapu), (organização comunista militante) liderada por Joshua Nkomo. Os milicianos de Mugabe caçaram e massacraram os supostos seguidores de Nkomo e os enterraram em covas coletivas;, contou, referindo-se ao genocídio chamado de Gukurahundi (1983-1987).
Prisão
A advogada constitucionalista Fadzayi Mahere, 34, moradora de Harare, também foi vítima do regime de Mugabe. ;Fui presa e passei uma noite na delegacia por protestar pacificamente em um parque contra a ingerência econômica e a introdução do Bond, uma nova moeda zimbabuense, em 2016. No ano seguinte, voltei a ser detida por organizar um torneio de futebol durante minha campanha para o Parlamento;, disse à reportagem. De acordo com ela, os conterrâneos reagiram de modo sóbrio à notícia sobre a morte. ;Não houve celebração, esse não é um modo africando. Além disso, o governo atual é tão ruim que não há muito o que comemorar;, acrescentou.
Ao ser informado sobre o falecimento de seu antecessor, o presidente Emmerson Mngangagwa interrompeu a viagem à Cidade do Cabo (África do Sul), onde participava do Fórum Econômico Mundial África, e retornou a Harare. ;É com a máxima tristeza que anuncio a morte do pai fundador do Zimbábue e ex-presidente, comandante Robert Mugabe;, escreveu em seu perfil no Twitter. ;O comandante Mugabe era um ícone da libertação, um pan-africano que dedicou sua vida à emancipação (;) de seu povo. Sua contribuição para a história de nossa nação e nosso continente nunca será esquecida. Que sua alma descanse em paz.; Mngangagwa ascendeu ao poder depois que os próprios simpatizantes de Mugabe o afastaram em 2017. O Zanu-PF, partido criado por Mugabe e no comando da nação desde 1980, ;concedeu a ele o status de herói nacional que ele tanto merece;, anunciou Mngangagwa.
Na capital, as bandeiras do país foram colocadas a meio mastro, em honra a Mugabe. ;As pessoas estão seguindo com suas vidas. Ninguém chora;, admitiu ao Correio o professor de computação Malvin Shiringo, 37. Para ele, Mugabe começou bem logo após a independência, apesar do Gukurahundi. ;Nossa economia permaneceu muito sólida até 1997, quando ele ofereceu aos veteranos compensações de US$ 50 mil pela participação na guerra de libertação. Então, 2 mil pessoas começaram a invadir as fazendas e, desde então, o Zimbábue iniciou uma queda livre. Agora, temos uma taxa de desemprego de 80% e alta inflação.;
Repercussão
Líderes africanos exaltaram a importância histórica e política de Mugabe. O presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, o qualificou de ;um combatente da libertação e defensor da causa da África contra o colonialismo;. O chefe de Estado de Zâmbia, Edgar Lungu, assegurou que Mugabe tem seu ;lugar nos anais da história africana por seu combate pela libertação da África e por sua defesa corajosa do continente;. A China destacou um ;dirigente excepcional, que defendeu firmemente a soberania de seu país;. Por sua vez, os Estados Unidos e o Reino Unido não pouparam críticas a Mugabe. Londres recordou que os zimbabuenses ;sofreram por muito tempo sob seu reinado autocrático;, mas externou a esperança de que o país possa ;seguir um caminho mais democrático e próspero;. O Departamento de Estado norte-americano reconheceu que Mugabe ;ajudou a libertar o Zimbábue;, mas recordou que ;seus abusos dos direitos humanos e uma séria má gestão da economia empobreceram milhões e traíram as esperanças de seu povo;. Até o fechamento desta edição, o Brasil não tinha se pronunciado.
;O comandante Mugabe era um ícone da libertação, um pan-africano que dedicou sua vida à emancipação (;) de seu povo. Sua contribuição para a história de nossa nação e nosso continente nunca será esquecida. Que sua alma descanse em paz;
Emmerson Mnangagwa, presidente do Zimbábue que assumiu após a renúncia de Mugabe
Personagem da notícia
De herói a pária global
Robert Mugabe nasceu em 21 de fevereiro de 1924 em uma família católica na missão de Kutama, ao noroeste de Harare. Foi descrito como um menino solitário e estudioso, sempre com um livro na mão, mesmo quando cuidava do gado. Depois que o pai abandonou a família quando ele tinha 10 anos, permaneceu concentrado nos estudos e obteve a formação de professor. Inicialmente, se identificou com o marxismo e, durante o período de estudante na Universidade de Fort Hare, na África do Sul, conviveu com muitos dos futuros líderes sul-africanos.
Depois de dar aulas em Gana, onde foi muito influenciado pelo presidente e fundador do país, Kwame Nkrumah, decidiu retornar à Rodésia, onde foi detido em 1964 por suas atividades políticas. Passou 10 anos na prisão. Quando assumiu o comando do país em 1980, que deixara de ser a Rodésia, uma colônia britânica que era governada pela minoria branca, seu discurso sobre a reconciliação e a unidade rendeu vários elogios no cenário internacional.
O revolucionário Mugabe era visto como um governante modelo. Em 10 anos, o país avançou a passos de gigante: construção de escolas, de centros médicos e de casas para a maioria negra. O brilho não demorou a desvanecer. Em 1982 enviou o exército à província de Matabeleland (sudoeste). A repressão, brutal, provocou 20 mil mortes. Na década de 2000, os abusos contra a oposição, fraudes eleitorais e sua violenta reforma agrária transformaram Mugabe em pária internacional.
Povo fala
Fadzayi Mahere, 34 anos, advogada, moradora de Harare
;Mugabe foi um ditador. Ele lidou sem piedade com os adversários. Fraudou eleições. Não permitiu que a democracia florecesse no Zimbábue. A maior parte dos zimbabuenses está em conflito, porque havia algo de bom quando ele começou a governar. No entanto, Mugabe provocou um rastro de destruição nacional, destruiu a economia e deixou um legado de violência e de repressão.;
Solomon Ndondo, 25 anos, diretor da ONG Africa Rise Foundation, morador de Masvingo
;Há uma mistura de sentimentos entre o meu povo. Alguns consideraram a notícia da morte dele como algo bom, outros a tacharam de ruim. Alguns zimbabuenses creem que Mugabe foi um verdadeiro herói pela emancipação da população negra. Alguém que, como todo o ser humano, tem seus próprios defeitos. Outros o veem como um tirano.;
Zenzele Ndebele, 40 anos, jornalista, morador de Bulawayo
;As pessoas de meu país têm reações mistas. Para alguns, Mugage foi um herói que libertou o Zimbábue do colonialismo. Para outros, foi um ditador, que coordenou o genocídio Gukurahundi, que matou mais de 20 mil pessoas (uma série de massacres de civis Ndebele realizados pelo Exército Nacional do Zimbábue entre 1983 e 1987).;
Nhlanhla Dube, 36 anos, autônomo, morador de Bulawayo
;Mugabe foi um tirano que destruiu o meu país, em busca de um Estado de único partido. Ele tinha zero de apoio em minha cidade e matou 20 mil pessoas durante o Gukurahundi. Não falo por outros, mas por mim. O Zimbábue é um lugar melhor sem ele. Estou feliz com a sua morte. Ele fez mais mal do que bem ao povo de Matatabeland (região do oeste e do sudoeste do país) e a todo o Zimbábue.;
Malvin Shiringo, 37 anos, professor de ciência da computação, morador de Harare
;Ele foi um ditador, que defendeu um Estado unipartidário e esmagou os oponentes. Mesmo depois de perder uma eleição em 2008, forçou um governo de unidade com Morgan Tsvangirai. Ele acabou removido do poder depois de tentar se aferrar ao poder.;