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Acordão sobre a mesa

Batido nas urnas, o premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, propõe ao líder da oposição de centro, Benny Gantz, a formação de um gabinete de união nacional para superar em curto prazo o impasse político que paralisa o país há seis meses

postado em 20/09/2019 04:14
Netanyahu (E) e Gantz (D) com o presidente Reuven Rivlin, na homenagem a Shimon Peres: coalizão depende de acertos delicados
Um aperto de mãos durante uma cerimônia em memória do ex-primeiro-ministro e ex-presidente Shimon Peres , um dos ganhadores do Nobel da Paz de 1994, morto há três anos, marcou o primeiro encontro entre o primeiro-ministro interino de Israel, Benjamin Netanyahu, e o líder da oposição de centro, Benny Gantz, dois dias depois de uma eleição que colocou o país uma vez mais diante do impasse politico. Sem um vencedor claro, os dois partidos com as maiores bancadas na Knesset (parlamento)parecem fadados a negociar um acordo para governar em coalizão. A questão colocada é qual dos dois seria o chefe de gabinete, e quais outras forças poderiam compor a maioria.

;Benny, temos de colocar em prática um governo de união;, afirmou Netanyahu em um vídeo exibido nas redes sociais. ;O povo espera que assumamos nossas responsabilidades e cooperemos;, reforçou. O premiê que governou o moderno Estado de Israel por mais tempo nas sete décadas desde a sua fundação admitiu a frustração com o resultado das urnas. ;Durante a campanha, defendi a formação de um governo de direita. Infelizmente, isso não será possível. A única opção é formar um governo de união, tão amplo quanto possível.;

A mudança no discurso de Bibi, como é conhecido, se assenta nos números praticamente definitivos da eleição de terça-feira. O Likud, o partido direitista liderado por ele, conseguiu 32 das 120 cadeiras da Knesset. O Kahol Lavan (;azul e branco;, as cores da bandeira israelense), de Gantz, elegeu 33 e terá a maior bancada. Nenhum dos dois, porém, conseguirá reunir a maioria de 61 cadeiras com as alianças delineadas durante a campanha. O cenário político saído das urnas oferecia como única opção, para ambos, negociar a adesão do Yisrael Beiteinu, partido de direita nacionalista liderado pelo ex-ministro da Defesa Avigdor Lieberman. Ele, porém, rejeita os aliados esquerdistas de Gantz e os partidos religiosos ultraortodoxos próximos a Netanyahu.


Recusa
;Os israelenses querem um governo de unidade e vou formá-lo, comigo à frente;, respondeu Gantz, general reformado que até 2015 foi o chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel. ;Nosso partido venceu e Netanyahu não conseguiu maioria para formar uma coalizão como esperava;, analisou. ;Vamos ouvir a todos, mas não aceitaremos que nos ditem as coisas.; De início, o líder centrista recusou o convite a uma reunião com o premiê. Durante a campanha, Gantz rejeitou sem rodeios a ideia de integrar um gabinete com Netanyahu, que enfrenta os tribunais no início de outubro em três processos por corrupção e pode tornar-se réu, a menos que tenha imunidade como premiê.

Uma aliança entre Kahol Lavan e Likud exigiria um recuo do general em relação ao veto que impôs ao atual premiê, ou o afastamento deste da liderança de seu partido. Seria a única opção de formar um governo com maioria estável, sem depender de concessões a partidos menores ; como tem sido a tônica nos últimos 10 anos. Em particular, seria a única opção para contornar uma negociação difícil com Avigdor Lieberman, que foi o responsável pelo impasse político surgido com as eleições de abril e provocou a convocação de novo pleito seis meses depois. Com apenas oito deputados, o Yisrael Beiteinu se tornou incontornável para qualquer composição que não seja um acordo entre os dois maiores partidos.

Ao propor a ;união nacional;, Netanyahu invocou a experiência feita entre 1984 e 1992 pelo Likud e pelo Partido Trabalhista. Adversários tradicionais desde a fundação de Israel, em 1948, os dois partidos governaram se alternando na chefia do gabinete. Na época, como agora, o preço da aliança foi a paralisia de Israel na questão mais crucial da frente externa ; o conflito com os palestinos, que reclamam a formação de um Estado soberano em territórios hoje sob ocupação de Israel.


;Benny, temos de colocar em prática um governo de união. O povo espera que assumamos nossas responsabilidades cooperemos;
Benjamin Netanyahu, premiê interino de Israel


;Nosso partido venceu e Netanyahu não conseguiu maioria para formar uma coalizão. Vamos ouvir a todos, mas não aceitaremos que nos ditem as coisas;
Benny Gantz, líder da oposição de centro


Análise da notícia

Encruzilhadas
superpostas


Silvio Queiroz

O cenário travado na Knesset ilustra à perfeição as encruzilhadas de Israel aos 70 anos de existência como Estado moderno. Questões e impasses de longo alcance se sobrepõem, sobre o pano de fundo de um conflito externo não resolvido ; com os palestinos ; e das dúvidas existenciais interiores de uma sociedade relativamente recente, embora assentada sobre fundamentos milenares cultivados na dispersão da diáspora.

Israel foi fundado em 1948, sobre a base de um compromisso aceito pelo líder do movimento sionista. David Ben Gurion, que se tornaria o primeiro chefe de governo, aceitou a ideia de ter um Estado judaico e democrático, porém apenas em parte do território reivindicado segundo a alegada herança bíblica.

A vitória na guerra de 1967 colocou ao alcance a opção de estender o Estado por todo o Eretz Israel (a terra dos antepassados). Mas a anexação das áreas ocupadas militarmente impliacaria uma decisão crucial sobre a população árabe palestina lá assentada ; também com raízes profundas ;, que tenderia a tornar-se majoritária ao longo dos anos.

Para preservar o caráter judaico do Estado, seria necessário deportá-los ou excluí-los da vida cidadã. Em ambos os casos, porém, estaria perdido o aspecto democrático. Para preservá-lo, as opções seriam abdicar da identidade religiosa ou da integridade territorial.

Foi a segunda variante a escolhida, no início dos anos 1990, com os Acordos de Oslo. Pelos termos acertados, a Cisjordânia seria o núcleo de um Estado palestino soberano convivendo em paz com Israel. Desde então, a renúncia territorial passou a esbarrar em outra das encruzilhadas superpostas no caminho da sociedade israelense.

Desde a vitória de 1967, tomou fôlego no país um nacionalismo de viés messiânico, que atribui a uma intervenção divina a conquista militar do Eretz Israel. O elemento sobrenatural, somado ao conflito inevitável com a população palestina sob ocupação, adubou o florescimento de uma vertente política ultranacionalista e religiosa, que se vê legitimada para impor ao conjunto dos israelenses os próprios preceitos de vida cotidiana ; e, dessa maneira, abre na sociedade uma nova linha de fratura com os segmentos laicos e seculares.


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