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A guerra esquecida

Confrontos entre rebeldes huthis, xiitas apoiados pelo Irã, e a coalizão liderada pela Arábia Saudita mataram 91 mil pessoas e semearam graves violações dos direitos humanos. Membro de grupo de especialistas da ONU cita impacto devastador para a população

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 22/09/2019 04:05
Milicianos pró-governo disparam com metralhadoras contra os rebeldes huthis, ao sul do aeroporto de Hodeida: armamentos pesados


A lógica do conflito no Iêmen segue a ilógica de todas as guerras: crianças recrutadas, civis alvejados, minas terrestres abandonadas para arruinar vidas, fome, dor e destruição. Desde 2015, o confronto entre a coalizão internacional liderada pela Arábia Saudita ; com apoio dos Estados Unidos ; e os rebeldes huthis (xiitas), respaldados pelo Irã, deixou pelo menos 91 mil mortos. Apesar das graves violações dos direitos humanos no campo de batalha, a comunidade internacional parece cerrar os olhos para a matança. Os huthis, que controlam a capital Sanaa (norte), anunciaram na sexta-feira que planejam suspender todas as ofensivas contra os sauditas, como parte de uma iniciativa de paz. Em agosto passado, a guerra se expandiu para o sul, abrindo nova frente em Áden entre as forças pró-governo, aliadas de Riad, e os separatistas do Conselho de Transição do Sul (STC), apoiados pelos Emirados Árabes Unidos, que também integram a coalizão.

De acordo com o jornalista independente iemenita Fuad Rajeh, 40 anos, a ;guerra esquecida; do Iêmen envolve grandes potências, como EUA, Reino Unido e França, enquanto China e Rússia são cúmplices. ;A fome, as batalhas terrestres, os ataques aéreos e doenças evitáveis estão matando o meu país. Aliados regionais dos norte-americanos devem ser responsabilizados pela situação catastrófica no Iêmen. Atores internacionais e regionais não se revelam sérios sobre o processo de paz, ignorando a maior crise humanitária do mundo;, lamenta.

Rajeh assegura que ataques indiscriminados prosseguem em todas as partes do conflito. ;Os huthis têm sitiado as cidades mais densamente povoadas, alvejado áreas residenciais com armas pesadas, atirado em civis desarmados, recrutado crianças, usado escolas e casas para fins militares e cometido outros crimes de guerra. Entre as graves violações dos huthis, está o uso de complexos residenciais como depósitos de armas.;







Desrespeito às leis

Ainda segundo o jornalista, a coalizão liderada pelos sauditas tem bombardeado escolas, hospitais, mercados, meios de transporte, estradas, casamentos, funerais e centros de detenção. ;Nenhum lado respeita as leis da guerra e os acordos internacionais. Forças apoiadas pela coalizão também recrutaram crianças e usaram a rede Al-Qaeda em batalhas contra os huthis;, comentou Rajeh. Ele explicou que as milícias controlam o Iêmen do extremo leste ao extremo norte. ;Não existem autoridades legítimas efetivas no país. Os milicianos têm sido responsáveis por assassinatos extrajudicais de prisioneiros e de inimigos durante as batalhas. Quando alguns combatentes se rendem a um determinado grupo, são executados;, disse. Um obstáculo para o combate às violações dos direitos humanos é o fato de as partes em conflito não cooperarem com investigadores locais e internacionais, além de acobertarem os próprios crimes. Às vezes, a ONU não consegue convencer facções a permitirem que monitores e investigadores entrem nos cenários de violações para a apuração.

A ex-deputada australiana Melissa Parke, membro do Grupo de Especialistas Eminentes Internacionais e Regionais sobre o Iêmen (GEE), subordinado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, passou por essa experiência neste ano. ;Nós visitamos o Iêmen em 2018, mas não recebemos autorização do governo iemenita e da coalizão liderada pela Arábia Saudita para entrar no país em 2019;, desabafou ao Correio. Ela acusou as partes do conflito de ;ampla variedade de graves violações dos direitos humanos internacionais e da lei humanitária;. ;Ambas mostram completo e insensível desprezo pela vida e pela dignidade humana. Ninguém tem as mãos limpas;, denunciou.

Segundo Melissa, o impacto de tais violações sobre as vidas de iemenitas comuns tem sido devastador. ;Bombardeios, ataques aéreos e franco-atiradores atingem pessoas que levam suas vidas em áreas onde não existe combate ativo em andamento, criando a sensação de que não existe lugar seguro para se esconder;, exemplifica. ;Minas terrestres deixadas pelos huthis matam e mutilam as pessoas, muito depois de as batalhas cessarem. O bloqueio, as táticas de cerco, as restrições à ajuda humanitária e ataques contra instalações essenciais para a sobrevivência da população ; como hospitais, tanques de água, infraestrutura portuária, mercados e farmácias ; estão privando as pessoas de alimentos, de água e de medicamentos. Isso numa época em que o Iêmen enfrenta crise humanitária sem precedentes: mais de 24 milhões de pessoas (80% da população) estão dependentes da ajuda humanitária para sobreviver. O GEE levantou a perspectiva de que as partes no conflito possam estar usando a fome como método de guerra;, declarou.


80%
Porcentagem da população iemenita que depende de ajuda humanitária para sobreviver


Depoimento




Crimes diários contra os civis

;Alguns países do Golfo Pérsico apoiam os rebeldes huthis, que invadiram a capital, Sanaa, e se apoderaram as instituições do Estado desde 2014. Isso complica a situação e faz com que uma solução seja distante. O huthis seguem cometendo crimes contra os inocentes iemenitas todos os dias. Eles plantaram milhares de minas terrestres em fazendas e em áreas residenciais do meu empobrecido país árabe. O Irã está fornecendo aos huthis mísseis e drones para matar iemenitas e atacar nações vizinhas, como a Arábia Saudita.

Os huthis desafiam a comunidade internacional e se mostram determinados a incendiar a região. Isso pôde ser percebido no último ataque contra as instalações de petróleo da Aramco, na Arábia Saudita, em 13 de setembro. Especialistas iranianos têm ajudado os huthis a realizarem tais ataques de alto nível.

A interrupção das violações dos direitos humanos no Iêmen exige firmes posições da comunidade internacional. Os huthis estão matando e ferindo centenas de civis em todos os lugares. Como eles tomaram as forças armadas e as instituições do governo, estão se comportando como um Estado. Eles têm usado forças militares excessivas contra os oponentes, incluindo sequestros, tortura de prisioneiros e outros crimes. No mês passado, eles dispararam um míssil balístico que caiu sobre uma base militar de Áden, matando comandantes de altas patentes e 40 soldados.;

Murad Abdo Mohammed,
26 anos, jornalista e ativista político de Áden (sul do Iêmen)


Três perguntas para


Melissa Parke,
ex-deputada australiana e membro do Grupo de Especialistas Internacionais e Regionais sobre o Iêmen (GEE)

Por que a comunidade internacional não está focando a devida atenção à guerra no Iêmen?
Infelizmente, enquanto atingimos cinco anos desde o início do conflito, o povo do Iêmen segue sofrendo graves violações dos direitos humanos e abusos pelas partes envolvidas no conflito. Elas demonstraram uma total falta de consideração pelo direito internacional, pela dignidade e pela vida humana. Em nosso relatório ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, nós, do Grupo de Especialistas Eminentes Internacionais e Regionais sobre o Iêmen (GEE), descrevemos o sofrimento dos civis iemenitas como ;um fracasso coletivo; de ambas as partes do conflito e da comunidade internacional, que falhou em responsabilizá-las por deixarem de respeitar o direito internacional e os direitos dos civis.

O que torna o conflito longe de uma solução?
Também afirmamos que as partes do conflito e a comunidade internacional têm uma ;responsabilidade coletiva; para condenar e tomar os passos apropriados para prevenir as violações e assegurar que os autores sejam responsabilizados. O GEE observou que essa responsabilidade recai especialmente sobre aqueles Estados que exercem influência sobre as partes do conflito, por meio do suprimento de armas, do apoio logístico ou de outra assistência. Esses países incluem os Estados Unidos, o Reino Unido, o Irã e a França.

Que recomendações vocês fizeram para acelerar o fim da guerra?
O GEE recomendou à comunidade internacional que os Estados proíbam a transferência de armas para as partes no conflito, dado o risco predominante de que essas armas sejam usadas pelas partes em graves violações do direito internacional, incluindo crimes de guerra. O fornecimento contínuo de armas às partes do conflito apenas perpetuará a guerra e prolongará o sofrimento do povo iemenita. (RC)

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