postado em 27/09/2019 04:13
A publicação de mais um documento sobre o escândalo pelo qual a oposição democrata deu início a um inquérito para possível processo de impeachment contra o presidente Donald Trump colocou a Casa Branca novamente na defensiva e deu contornos mais nítidos à acusação de obstrução de Justiça, que pode custar o cargo ao bilionário. O denunciante de uma conversa telefônica na qual Trump pressionou o colega da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, a investigar o ex-vice-presidente americano Joe Biden, possível candidato à Casa Branca na eleição de 2020, sustenta que autoridades do primeiro escalão tentaram restringir o acesso a partes da gravação, manobra que aproxima o caso do escândalo Watergate, que provocou em 1974 a renúncia de Richard Nixon (leia a Memória) ; um republicano, como o atual mandatário.
;Recebi informações de vários funcionários do governo americano de que o presidente dos Estados Unidos está usando o poder de seu cargo para solicitar a interferência de um país estrangeiro na eleição americana de 2020;, diz o relatório do delator, identificado pelo jornal The New York Times como um agente da Agência Central de Inteligência (CIA) que por um tempo serviu na mansão presidencial. A denúncia, que motivou a abertura do inquérito na Câmara dos Deputados, desdobrou-se ontem com a divulgação da íntegra do relatório, no qual o informante relata os esforços para encobrir o suposto abuso de autoridade do presidente.
;Nos dias seguintes à ligação, soube por vários funcionários que autoridades da Casa Branca agiram para ;bloquear; todos os arquivos vinculados (à ligação);, diz o texto. ;Eles me disseram que foram ;orientados; pelos advogados da Casa Branca a eliminar a transcrição eletrônica do sistema usual de computadores (;) e armazená-la em um sistema à parte usado para informação sigilosa e codificada, como as que se referem a operações encobertas.; Na interpretação do delator, ;esse conjunto de ações enfatizou que as autoridades da Casa Branca entenderam a seriedade do que aconteceu (no telefonema);.
A transcrição integral da conversa entre Trump e Zelensky, em 25 de julho, mostra o presidente americano pedindo repetidas vezes ao colega que o ajudasse com uma investigação sobre alegadas operações irregulares do filho de Biden no país. O ex-vice-presidente lidera as pesquisas nacionais na corrida pela candidatura da oposição democrata à eleição de 2020, na qual o republicano tentará o segundo mandato. A denúncia sobre o telefonema foi feita pelo agente aos superiores em 12 de agosto. Embora admita que não foi testemunha da conversa entre os presidentes, ele sustenta que fez a comunicação ;no âmbito das relações regulares entre as agências; do governo.
Falando à imprensa na Casa Branca, depois da divugação do relatório, Trump reiterou a queixa de que é vítima da ;maior caça às bruxas; da história política do país. ;O que os democratas estão fazendo é uma vergonha e não deveria ser permitido;, protestou. Sobre o denunciante, classificou-o como ;quase um espião; e invocou antecedentes em que a espionagem foi punida com pena de morte. ;Vocês sabem o que fazíamos nos velhos tempos, quando éramos espertos? Espiões e traidores eram tratados de uma maneira um pouco diferente da que usamos hoje...;
A divulgação do relatório do denunciante coincidiu com o primeiro dia de depoimento do diretor de Inteligância Nacional, Jospeh McGuire, perante o Congresso. Embora tivesse inicialmente resistido a falar sobre o tema, ele reconheceu que o agente ;agiu de boa-fé; e ;fez o que era correto;. A presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, a política democrata com maior autoridade em Washington, subiu o tom da crise e acusou diretamente a Casa Branca de ;tentar encobrir; ações ilegais de Trump. A porta-voz do presidente, Stephanie Grisham, minimizou o teor do novo documento ; ;uma compilação de relatos de terceiros e recortes de jornal; ; e prometeu que o governo ; continuará resistindo à histeria e falsas narrativas que os democratas e muitos dos principais meios de comunicação propagam;.
Memória
A sombra de Watergate
; Silvio Queiroz
Gravações sonegadas em meio a investigações foram o começo do fim para Richard Nixon no escândalo Watergate, que levaram o então presidente dos Estados Unidos à renúncia, para escapar de um processo de impeachment. O caso, iniciado com um incidente policial aparentemente desconexo do processo político, revelou uma teia de relações secretas entre a Casa Branca e os delinquentes que haviam invadido o comitê de campanha do Partido Democrata, em junho de 1972, na largada para a eleição presidencial de novembro. Nixon, do Partido Republicano, foi reeleito com vitória avassaladora, mas as investigações sobre o incidente no edifício Watergate, em Washington, inviabilizaram seu segundo mandato.
Foi a tenacidade de dois repórteres do jornal The Washington Post, Bob Woodward e Carl Bernstein, que causou a ruína de Nixon. Em investigação paralela ao inquérito oficial sobre a invasão da sede de campanha democrata ; com a finalidade de instalar escutas telefônicas ;, a dupla de jornalistas chegou às conexões encobertas entre os autores do ataque e o goveno Nixon. Woodward e Bernstein seguiram as pistas passadas por um informante mantido na época sob anonimato, com o pseudônimo de ;Garganta profunda;, emprestado de um filme pornográfico de grande sucesso à época.
O aspecto distintivo de Watergate, quando se observam as suspeitas sobre Donald Trump no caso da Ucrânia, é um termo que foi fatal para o futuro de Nixon ; como pode ser para o atual presidente. Mais do que a tentativa de espionar o comitê democrata, em 1972, o que deterninou a queda do então presidente foi a obstrução de Justiça, um crime punível com o impeachment. Entre outras ações, o que selou o destino do chefe de Estado foi a tentativa de impedir o acesso de investigadores às fitas de conversações nas quais ele instruía assessores a intervir com o FBI (polícia federal dos EUA) para que parasse as investigações sobre a invasão do edifício Watergate.
A transcrição do conteúdo dessas fitas, entregues pela Casa Branca sob ordem da Justiça, no fim de julho de 1974, tornou insustentável a posição de Nixon. Em 8 de agosto, ele apresentou oficialmente a renúncia.