Mundo

Dia da Dor em Hong Kong

Repressão a protestos na ex-colônia britânica ofusca o 70º aniversário do regime comunista, celebrado com desfile militar e com discurso de Xi Jinping em Pequim. Policial dispara contra peito de manifestante, no primeiro uso de munição letal em quatro meses de crise

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 02/10/2019 04:14
Repressão a protestos na ex-colônia britânica ofusca o 70º aniversário do regime comunista, celebrado com desfile militar e com discurso de Xi Jinping em Pequim. Policial dispara contra peito de manifestante, no primeiro uso de munição letal em quatro meses de crise






Hong Kong. Durante confronto com as forças de segurança, Tsang Chi Kin, 18 anos, tentou golpear um agente com um pedaço de pau. O policial reagiu e atirou à queima-roupa contra o peito do manifestante, que lutava pela vida até a noite de ontem. Em um vídeo divulgado pela internet, ele aparecia deitado no chão, gritando: ;Levem-me ao hospital, meu peito está doendo, preciso ir ao hospital;. Foi o primeiro disparo com arma de fogo em quase quatro meses de revolução. ;O policial atirou após ser atacado e atingiu uma pessoa no peito (...);, afirmou uma fonte de segurança que pediu anonimato. Pelas ruas da ex-colônia britânica, barricadas improvisadas ardiam em chamas, lojas eram vandalizadas, enquanto civis caminhavam, aturdidos, em meio ao caos. No ;Dia da Dor;, mais de 180 pessoas foram presas e 66 ficaram feridas, 31 delas tiveram de ser hospitalizadas. Além de Tsang Chi, o estado clínico de outro cidadão era ;crítico;.

Pequim. A 1.965km dali, ao norte, o presidente da China, Xi Jinping, comandava uma parada militar marcada pela coreografia meticulosamente sincronizada de milhares de soldados e pela exibição de armamentos avançados. ;Nada pode fazer com que os pilares da nossa grande nação sejam abalados. Nada pode impedir que a nação e o povo chineses avancem;, declarou Xi, na Praça Tiananmen (;Paz Celestial;), ao celebrar o 70; aniversário da fundação da China Comunista por Mao Tsé-tung. Parecia uma mensagem para os moradores de Hong Kong.

Um deles, o assistente social Chang Ching Wa Jonathan, 54, saiu às ruas de Hong Kong para protestar contra o controle do Partido Comunista Chinês (PCC) e denunciar uma violação do modelo ;um país, dois sistemas;. ;Eu estive pessoalmente envolvido nas manifestações desta tarde, as quais foram menos conflituosas no começo. Mais de 100 mil ativistas surgiram e rapidamente romperam as linhas policiais, deixando os agentes sem ação. No fim da tarde, quando tomamos conhecimento do disparo contra Tsang Chi Kin, a atmosfera ficou amarga, e a polícia se tornou mais agressiva. Era possível ver famílias com crianças nas ruas. À noite, eu escapei por pouco de uma explosão de canhão d;água;, relatou ao Correio um dos sobreviventes do massacre da Praça da Paz Celestial, em 4 de junho de 1989. Diante do escritório de representação da China em Hong Kong, manifestantes arremessaram ovos contra um retrato de Xi e retiraram cartazes alusivos ao 70; aniversário do regime comunista.

Sob condição de anonimato, outro manifestante avisou: ;Quanto mais repressão o governo colocar sobre nós, mais ações de rebeldia nós tomaremos;. Segundo ele, não existe meios de retroceder. ;A única coisa que nos fará interromper os protestos contra Carrie Lam (chefe do Executivo, subalterna a Xi Jinping) é o cumprimento de nossas demandas;, disse à reportagem, em referência a uma investigação independente sobre a violência cometida pelas forças de segurança; anistia para os presos políticos; o fim do uso da palavra ;amotinados; para classificar os ativistas; e a instauração do sufrágio universal direto na cidade. ;A polícia de Hong Kong tem abusado do poder contra os cidadãos e os jornalistas. Esse tipo de ação está interferindo na liberdade de associação;, afirmou.

O ativista contou ter visto policiais detendo várias garotas indefesas e usado gás lacrimogêneo e spray de pimenta. ;Eu creio que as pessoas em Hong Kong aumentarão as ações contra o governo. Nós temos uma forte crença na liberdade e na democracia. Tentamos permitir que o mundo saiba o que está ocorrendo em Hong Kong e na China, e esperamos poder ampliar a consciência da comunidade internacional para punir a ditadura totalitária.;

Investigação
Por meio de nota, o diretor da Anistia Internacional em Hong Kong, Man-Kei Tam, declarou que o disparo contra um manifestante na cidade ;marca um desenvolvimento alarmante na resposta da polícia aos protestos;. ;Nós apelamos às autoridades de Hong Kong para lançarem uma investigação urgente e eficiente sobre a sequência de eventos que levaram um adolescente a lutar por sua vida no hospital;, disse. ;Pedimos que revisem urgentemente a abordagem no policiamento dos protestos, a fim de desescalar a situação e impedir que mais vidas sejam colocadas em risco.;

Também sobrevivente da matança em Tiananmen, a artista plástica Rose Tang ; que morou por oito anos em Hong Kong e hoje vive em Nova York ; teme a intensificação das medidas repressivas por parte da polícia. ;O comissário de polícia Stephen Lo admitiu hoje (ontem) que a decisão tomada pelo agente de balear o adolescente era ;a mais razoável, mais apropriada e mais legal;. Isso significa que Pequim e o governo de Hong Kong decidiram por mais assassinatos e por reprimir a rebelião a qualquer custo. É da natureza do Partido Comunista Chinês matar;, afirmou ao Correio. ;O uso de munição letal em quatro pontos diferentes de Hong Kong, por parte da polícia, indica que o massacre em Hong Kong oficialmente começou.;


;Nada pode fazer com que os pilares da nossa grande nação sejam abalados. Nada pode impedir que a nação e o povo chineses avancem;
Xi Jinping, presidente da China



Eu acho...

;A violência de hoje (ontem) certamente galvanizará o movimento. Mas as consequências mais terríveis são as seguintes: como o próprio chefe de polícia oficialmente tolera o uso de munição letal, as forças de segurança não hesitarão mais em atirar para matar. Eu espero que eventualmente veremos mais mortes e um padrão de escalada da supressão letal e da violência.;


Chan Ching Wa Jonathan, 54 anos, morador de Hong Kong e sobrevivente do massacre da Praça da Paz Celestial


;Espero que mais moradores de Hong Kong se rebelem. Morei lá por oito anos, onde atuei como jornalista entre 1997 e 2003. As pessoas da ex-colônia britânica são muito resilientes. Elas seguirão protestando e inventando mais. Espero mais batalhas de rua.;


Rose Tang, 50 anos, sobrevivente do massacre da Praça da Paz Celestial. Hoje vive em Nova York


Firmeza no poder

Confira a evolução através do tempo do Partido Comunista Chinês (PCC), que fundou a República Popular da China em 1; de outubro de 1949:


Maoísmo no governo
Durante quase três décadas, a China teve seu estilo próprio do governo: o maoismo. Sob o regime do fundador da República Popular da China, Mao Tsé-tung (foto), o Estado assumiu o controle das indústrias, enquanto os estabelecimentos agrícolas e as granjas foram coletivizados.

A ;Grande Fome;
O Grande Salto Adiante de 1958 ; reorganização maciça do trabalho para impulsionar a produção agrícola e industrial ; acabou matando de fome dezenas de milhões de pessoas.

Revolução Cultural
Em 1966, Mao lançou a Revolução Cultural. O movimento esmagou os adversários políticos e culminou em um desastre, devido aos excessos cometidos pela Guarda Vermelha.

Abertura econômica
Dois anos depois da morte de Mao, o PCC abandonou o maoísmo e pôs em marcha, em 1978, a política de ;abertura e reforma;, sob a liderança de Deng Xiaoping. A economia cresceu, após uma série de medidas pró-mercado, que permitiram os investimentos externos e o capital privado. Milhões de pessoas saíram da pobreza.


Controle estrito
Neste ;socialismo com características chinesas;, é possível ver Ferraris nas ruas das grandes cidades e os mais abastados compram em lojas de luxo, como Gucci. Mas uma coisa não mudou: o Partido Comunista mantém as rédeas da economia. O presidente chinês, Xi Jinping (foto), deixou claro que os históricos feitos do país ;demonstram por completo que só o Partido Comunista pode liderar a China;. ;Células; do PCC estão presentes nas companhias privadas. As empresas nas mãos do Estado permanecem como atores principais na economia.

A filosofia Mao/Xi
Xi se tornou o líder mais poderoso desde Mao e se beneficiou do culto à personalidade. O fundador do país teve o Pensamento Mao Tsé-Tung. O atual líder consagrou na Constituição o Pensamento Xi Jinping sobre o Socialismo com Características Chinesas para uma Nova Era.

Combate à corrupção
Xi supervisou a linha dura contra a corrupção que castigou 1,5 milhão de responsáveis do PCC, medida vista por analistas como expurgo de rivais.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação