postado em 02/10/2019 04:14
O apoio maciço de cidadãos nas ruas e governadores regionais, além da cúpula militar, parece ter resolvido a favor do presidente Martín Vizcarra, ao menos de início, o impasse político consumado na noite anterior. Em resposta à maioria oposicionista que bloqueou suas iniciativas de reformas no Legislativo e no Judiciário, Vizcarra invocou um dispositivo constitucional, dissolveu o Congresso e convocou novas eleições. Os parlamentares responderam com uma moção que declara a Presidência ;temporariamente vaga;, por ;incapacidade moral; do titular, e passa o poder à vice, Mercedes Aráoz, e o país amanheceu, formalmente, com dois chefes de Estado.
Ainda na noite de segunda-feira e madrugada de ontem, enquanto milhares de simpatizantes manifestavam apoio a Vizcarra nas ruas da capital, Lima, e nas cidades de Huancayo, Cuzco, Arequipa, Puno, Trujillo, Moquegua e Tacna, o presidente do Congresso, o presidente do Congresso, Pedro Olaechea, dava posse a Aráoz. ;Não fujo das minhas responsabilidades, por mais difíceis que sejam as circunstâncias;, disse ela, que foi ministra do presidente Alan García, um dos ex-mandatários atingidos pelos recentes escândalos de corrupção (leia abaixo). Afastada politicamente de Vizcarra, ela classificou como ;inconstitucional; a dissolução do Legislativo.
Com 90% de rejeição aos congressistas nas pesquisas de opinião, o presidente ignorou a decisão dos adversários, apoiado por 10 governadores de províncias e por um pronunciamento dos chefes militares. ;O chefe do Comando Conjunto das Forças Armadas e os Comandantes Gerais do Exército, da Marinha, da Força Aérea e da Polícia Nacional do Peru reafirmam no Palácio de Governo seu pleno apoio à ordem constitucional e ao presidente Martín Vizcarra;, tuitou o governo, que publicou uma fotogra da reunião ; praticamente simultânea à ;rebelião; do parlamento.
O país amanheceu com forte presença das forças militares nas ruas de Lima. Uma sessão de emergência convocada na madrugada pelo presidente do Congresso foi suspensa na última hora, sem explicações. No decreto pelo qual suspendeu o Congresso, Vizcarra marcou eleições para 26 de janeiro ; os congressistas tinham mandato até julho de 2021. Até a posse da nova legislatura, seguirá funcionando a Comissão Permanente do Congresso, com 18 integrantes, na maioria alinhados com a oposição ao presidente. O presidente do Legislativo prevê para sexta-feira uma votação sobre a destituição definitiva do presidente.
Líderes empresariais se somaram aos legisladores e acusaram Vizcarra de cometer ;uma violação da Constituição e do sistema democrático;. A Conferência Episcopal pediu moderação às partes e uma solução para o impasse ;dentro da ordem constitucional e democrática;. Na mesma linha, a Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), divulgou comunicado no qual afirma que ;compete ao Tribunal Constitucional do Peru se pronunciar sobre a legalidade e legitimidade das decisões institucionais adotadas ontem (segunda-feira);.
A última vez em que o Congresso foi suspenso, em abril de 1992, a iniciativa partiu do presidente Alberto Fujimori, que tinha sido eleito em 1990. Em nome de combater a guerrilha comunista do Sendero Luminoso, ele deu golpe e assumiu plenos poderes, com o apoio dos militares. Teve sucesso na derrota dos rebeldes, reelegeu-se em 1995 e teve de renunciar em 2000, sob acusação de ter comprado votos para um projeto de emenda pelo qual seria autorizado a disputar o terceiro mandato.
;Está claro que a obstrução e a blindagem (do Congresso) não cessam e não haverá acordo possível;
Martín Vizcarra, presidente afastado pelo Legislativo
Entenda o caso
Decomposição política
O estopim da crise política que culminou no confronto entre Executivo e Legislativo foi a recusa do Congresso a dar um voto de confiança ao presidente Martín Vizcarra para alterar o sistema pelo qual são escolhidos os integrantes do Tribunal Constitucional. A maioria opositora, determinada a manter para si a prerrogativa, rejeitou também iniciativas para uma reforma política e para a antecipação das eleições.
A raiz do impasse, porém, se projeta para três anos atrás, quando o banqueiro Pedro Pablo Kuczynski foi eleito, por estreita margem, para substituir o militar nacionalista Ollanta Humala. Embora tenha vencido a disputa pelo Executivo, Kuczynski tomou posse com o Congresso dominado pelo partido de sua principal adversária, Keiko Fujimori, filha do ex-presidente Alberto Fujimori.
Foi nesse quadro que se desenrolaram as investigações sobre doações irregulares para políticos e partidos por parte da empreiteira brasileira Odebrecht. A ;lava-jato peruana;, como ficou conhecida, colocou no banco dos réus Kuczynski e os três antecessores imediatos: além de Humala, foram processados Alan García e Alejandro Toledo.
García, presidente em dois mandatos (1985-1990 e 2006-2011), suicidou-se em abril último, em casa, quando recebeu ordem de prisão. Toledo, exilado nos Estados Unidos, enfrenta um pedido de extradição. A ofensiva judicial não poupou Keiko Fujimori, atualmente em prisão preventiva.
Encurralado e sem apoio parlamentar, Kuczynski renunciou em março de 2018 e foi substituído por Vizcarra, que era seu primeiro vice-presidente. Sem história política anterior, ele assumiu sem contar com uma base de apoio no Congresso, mas optou pelo caminho do enfrentamento com a oposição, apostando na forte rejeição popular aos parlamentares, vistos como beneficiários de um sistema político impregnado pela corrupção.
A acelerada decomposição dos partidos tradicionais, sem que novas forças ocupassem o espaço, torna o Peru, hoje, um país sem sistema político estável e sujeito a repetidas crises ; com o agravante de que a maioria expressiva da população aprova a dissolução do Legislativo e a instituição de um ;governo forte;.