postado em 08/10/2019 04:14
O presidente Donald Trump, o Departamento de Defesa e alguns dos congressistas mais influentes do Partido Republicano apresentaram ontem versões e opiniões desencontradas sobre a retirada das tropas americanas de regiões da Síria fronteiriças à Turquia. A decisão, anunciada na noite de domingo, permitiria às forças turcas lançar operações militares para afastar da área os combatentes da minoria étnica curda, que tiveram papel central na ofensiva contra o ;califado; instaurado pelo grupo jihadista Estado Islâmico (EI), mas são classificados como ;terroristas; pelo governo de Ancara. Trump justificou a iniciativa em nome de encerrar o envolvimento em ;guerras tribais sem fim;, mas advertiu a Turquia para que ;não passe dos limites;. Dirigentes curdos denunciaram a medida como ;uma punhalada nas costas;.
;É hora de sairmos dessas ridículas guerras sem fim, muitas delas tribais, e trazermos nossos soldados para casa. Lutaremos onde seja em nosso benefício, e lutaremos somente para vencer;, escreveu o presidente no Twitter. Cabe ;aos atores da região;, acrescentou, solucionar os conflitos locais. ;Turquia, Europa, Síria, Irã, Iraque, Rússia e curdos agora terão que resolver a situação e o que querem fazer com os combatentes do EI capturados;, completou. Diante das reações, Trump advertiu o presidente turco, Recep TayyipErdogan, de que se fizer ;algo que eu, com minha grande e inigualável sabedoria, considerar que ultrapassa os limites, vou destruir e arrasar completamente a economia da Turquia;.
Partiu do dirigente curdo Kino Gabriel, porta-voz das Forças Democráticas Sírias, a reação mais enérgica à partida dos efetivos americanos, cuja presença inibiu, até aqui, uma ofensiva de Ancara para deslocá-los das posições conquistadas no combate contra os jihadistas. ;Isso foi uma surpresa e podemos dizer que é uma punhalada nas nossas costas;, disse Gabriel à emissora árabe al-Hadath. No mesmo tom, a ex-embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, Nikki Haley, lembrou que os curdos ;foram determinantes; na derrota do EI na Síria. ;Temos de defender nossos aliados, se esperamos que eles nos defendam.;
O presidente turco, que vinha sinalizando crescente impaciência com o que considera ;hesitação; de Washington para afastar da fronteira síria ;os terroristas;, reafirmou que suas tropas estão prontas para iniciar ;a limpeza; da área, mais ainda diante da indicação de que os EUA não impediriam uma operação. ;Há uma frase que sempre usamos: podemos chegar a qualquer momento, sem aviso;, sugeriu Erdogan. O chanceler Mevlüt Cavusoglu insistiu na urgência de estabelecer uma ;zona de segurança; para o sudeste da Turquia, berço de uma expressiva população curda que luta há décadas por um Estado autônomo.
Desencontros
O anúncio de Trump foi recebido com críticas entre importantes correligionários no Congresso, como o experiente senador Lindsay Graham, um dos políticos governistas mais próximos do presidente. Ele alertou para ;um desastre em formação; e acenou com a possibilidade de uma iniciativa conjunta com a oposição democrata para que a decisão seja revogada. O líder da maioria governista no Senado, Mitch McConnell, reforçou o tom e alertou que uma ;saída precipitada; das tropas americanas ;benificiará o Irã, a Rússia e o regime do presidente (sírio) Bashar al-Assad;. Na mesma linha, o senador Marco Rubio afirmou que a medida poderá ;estimular uma escalada de ataques iranianos e deflagrar uma guerra regional;.
Embora o governo tenha indicado que não mais se interporia entre as forças turcas e os curdos, um comunicado do Departamento de Defesa reforçou o alerta a Ancara para as ;consequências desestabilizadoras; de possíveis ações. ;Deixamos claro para a Turquia, tal como disse o presidente, que não apoiamos uma operação no norte da Síria;, afirmou o Pentágono. De acordo com o texto, as forças americanas ;não vão apoiar nem participar; de uma ação.
Análise da notícia
Horizonte é 2020
; Silvio Queiroz
A menção de Trump à urgência de ;trazer os soldados para casa; parece ser a chave para compreender um movimento que, à primeira vista, exibe o potencial para desestabilizar perigosamente uma região onde interesses múltiplos e conflitantes se sobrepõem em solo fértil para a germinação de conflitos. No mesmo tuíte no qual anunciou e justificou a decisão de retirar tropas da fronteira sírio-turca, o presidente americano enumerou os fatores de apreensão: Síria, Turquia, Irã, Iraque e a minoria curda, espalhada no território dos quatro países.
A geopolítica dessa esquina de civilizações sofre abalos incessantes desde que os EUA depuseram Saddam Hussein, em 2003. Com o ditador fora de cena, a maioria xiita do Iraque, ligada ao Irã por laços de história e fé, tornou-se a força principal em um país no qual a minoria curda consolidou um Estado semiautônomo às portas da Turquia ; outra potência regional que não esconde a pretensão de se reposicionar, passado um século da ruína do Império Otomano. A guerra civil na Síria, a partir de 2011, apenas acrescentou peças a um quebra-cabeça que desafia os estrategistas dos últimos três governos americanos.
Sair do que chama de ;guerras tribais intermináveis; foi um dos carros-chefes da campanha vitoriosa de Trump à Casa Branca, em 2016. Indiferente à insistência de ;falcões; republicanos, como seu ex-conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, o presidente se apressa a dar por encerrado o envolvimento dos EUA na Síria, a despeito de o saldo líquido da intervenção ter sido um ;presente; para o regime de Bashar al-Assad ; a neutralização do Estado Islâmico e de seu ;califado; incrustado de ambos os lados da fronteira sírio-iraquiana.
Para a campanha à reeleição em novembro de 2020, a imagem desejada é a dos ;rapazes; desembarcando de volta, não a de caixões cobertos pela bandeira americana.
"É hora de sairmos dessas ridículas guerras sem fim, muitas delas tribais, e trazermos nossos soldados para casa;
Donald Trump, presidente dos EUA