postado em 16/10/2019 04:16
Enquanto o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, negava categoricamente atender a um pedido dos Estados Unidos e decretar um cessar-fogo no nordeste da Síria, as tropas russas aproveitavam a retirada das forças norte-americanas para avançar sobre a região. Moscou avisou que não permitirá qualquer confronto entre militares sírios e turcos. ;Isso seria simplesmente inaceitável... E não permitiremos isso, com certeza;, disse o enviado especial da Rússia à Síria, Alexander Lavrentyev. Aliado dos russos, o regime de Damasco prometeu defender as Forças Democráticas Sírias (FDS) e suas milícias curdas Unidades de Proteção Popular (YPG) da campanha militar lançada por Ancara.
Os rebeldes curdos resistiam ferozmente no subúrbio de Manbij, cidade de maioria árabe, e, mais a leste, em Ras Al Ayn, reduto das FDS. ;Eles nos dizem: declarem um cessar-fogo, mas jamais vamos declarar um cessar-fogo;, afirmou ontem Erdogan a jornalistas, depois de retornar de uma visita ao Azerbaijão. Um incidente próximo à cidade de An Isa elevou a tensão no norte da Síria: dois soldados do regime sírio morreram atingidos por disparos de artilharia dos rebeldes pró-Turquia, de acordo com o Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDH). As forças turcas lançaram a ofensiva no Curdistão sírio em 9 de outubro passado ; em sete dias de batalhas, 71 civis e 158 combatentes das FDS morreram, além de 128 milicianos aliados de Ancara. Por sua vez, a Turquia anunciou a morte de seis soldados e de 20 civis por foguetes. Pelo menos 160 mil civis foram expulsos de suas casas. Desde o início da incursão, a Turquia e aliados sírios capturaram uma faixa fronteiriça de mais de 100km. Hoje, o Conselho de Segurança da ONU se reunirá para debater o conflito, a pedido de Bélgica, Alemanha, França, Polônia e Reino Unido.
;Nós estamos sendo assassinados várias vezes por dia. Tememos uma carnificina por parte de mercenários turcos. Eles estão do outro lado da fronteira, a poucas centenas de metros de minha casa, e progridem na região sudeste da zona rural de minha cidade;, relatou ao Correio Idris Nassan, ex-vice-diretor de Assuntos Externos do governo autônomo de Kobane, a nordeste de Manbij e exatamente na fronteira sírio-turca. Segundo ele, os civis abandonam suas casas ao cair da noite e retornam ao amanhecer para buscar comida, tomar banho e tentar descansar um pouco. ;Minha família tem deixado nosso lar sempre à noite, em direção a um vilarejo. Qualquer tiroteio ou qualquer rumor é o bastante para forçar os moradores a fugir;, lamentou. No momento em que falava com a reportagem, ele lutava para tranquilizar civis em pânico com as notícias sobre a presença de mercenários turcos em uma fábrica de cimentos de Lafarge, a 60km de Kobane.
Traição
Nassan acredita que Rússia, Turquia e Irã concordam em apoiar a ofensiva da Turquia para destruir as forças curdas e o governo autônomo. ;A Turquia é inimiga histórica dos curdos e usa a questão dos refugiado para legislar a ofensiva. Ela conta com o silêncio da Europa e muda a demografia das cidades curdas, ao instalar nelas a maior parte dos refugiados sírios. A Rússia apoia os ataques curdos para ganhar terreno contra os Estados Unidos e se livrar das FDS, ou, pelo menos, forçá-las a se submeterem a Damasco;, observou. O morador de Kobane analisa a retirada das tropas dos EUA como uma traição não esperada pelos curdos. ;A Rússia luta para recuperar poços de petróleo sírios em controle dos americanos. Por isso, utilizar o regime de Bashar Al-Assad e o governo de Erdogan confere a Moscou poder suficiente contra Washington.;
A cerca de 320km a leste de Kobane, em Al-Qamishli, os combates deram uma trégua ontem, moradores começaram a retornar à cidade e o comércio voltou a funcionar. ;Mas as pessoas estão preocupadas com o que ocorrerá nos próximos dias. Elas não acreditam mais em ninguém;, desabafou à reportagem Baderkhan Ahmed, fotógrafo e intérprete curdo. ;A presença dos russos é resultado do acordo das FDS com o regime do presidente sírio, Bashar Al-Assad. Trata-se de uma política suja, que muda de acordo com interesses. Esperamos que isso não afete o nosso povo e a paz em nossa região.;
Chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (em Moscou), Lilia Shevtsova explicou ao Correio que Rússia, Turquia e Irã mantêm interesse na Síria por uma série de razões. ;Eu citaria a posição estratégica do país no Oriente Médio e as commodities de petróleo e de gás. Para a Turquia e o Irã, a Síria é um problema de segurança na vizinhança. Para a Rússia, significa um meio de retomar o protagonismo internacional.;
Eu acho...
;Estamos confusos sobre os desenvolvimentos na Síria e sobre a política dos Estados Unidos. Em relação à Rússia, trata-se de uma situação muito complicada. Por um lado, Moscou não quer trair o presidente sírio, Bashar Al-Assad. Por outro, não pretende entrar em conflito com o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan.;
Lilia Shevtsova, chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (em Moscou)
;A Rússia tenta manter, como aliados, a Síria e a Turquia, ao trazê-las para o mesmo lado de combate aos sonhos curdos. Também busca enfraquecer a presença dos EUA, enquanto Moscou vê os EUA como poder de ocupação na Síria.;
Idris Nassan, ex-vice-diretor de Assuntos Externos do governo autônomo de Kobane
Duas perguntas para
Murat Yavuz Ates, embaixador da República da Turquia no Brasil
Especialistas acusam os EUA de traição contra os curdos. A Turquia pretende limpar a Síria das forças curdas?
Infelizmente, como resultado dos eventos dos últimos anos, a parte nordeste da Síria, a qual constituir a fronteira turca, se tornou base de uma organização terrorista chamada PYD (Partido de União Democrática)/YPG, uma ramificação do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão, grupo terrorista reconhecido internacionalmente).
Seria um grande erro chamar a PYD/YPG de ;forças curdas;, pois essa organização terrorista não representa o povo curdo. A presença desse grupo terrorista ameaça a integridade territorial e a unidade da Síria. Não há dúvidas sobre violações dos direitos humanos cometidas pela PYD/YPG, como o recrutamento de crianças soldados, a intimidação de dissidentes, a engenharia demográfica e o recrutamento forçado em áreas sob seu controle.
As populações locais são bastante contrárias à regra tirânica da PYD/YPG. O grupo terrorista PYD/YPG perpetrou centenas de ataques terroristas contra a Turquia ou os sírios na Síria. Através de túneis escavados ao longo de áreas fronteiriças, explosivos e munições foram contrabandeados para a Turquia, a fim de serem entregues à organização terrorista PKK. Não se poderia esperar que a Turquia tolerasse a presença de tal grupo terrorista em suas fronteiras.
Qual é a meta da incursão militar turca na Síria?
A Turquia foi obrigada a tomar ação para eliminar uma ameaça existencial de segurança ao longo da fronteira com a Síria. Nesse cenário, as Forças Armadas Turcas lançaram a ;Operação Primavera de Paz;, em 9 de outubro, com o apoio do Exército Nacional Sírio, o braço armado unido da oposição síria. Os objetivos são claros: eliminar uma ameaça terrorista de longa data contra a segurança nacional da Turquia; reforçar a unidade e a integridade territorial da Síria; liberar a população local da opressão por parte da PYD/YPG; e preparar o terreno para o retorno seguro e voluntário de sírios deslocados. (RC)