postado em 21/10/2019 04:18
[FOTO1]A ex-primeira-dama argentina Eva Perón lutava contra um câncer quando lançou a obra La razón de mi vida (A razão da minha vida), em 15 de outubro de 1951. ;Sonho sempre com o dia em que uma mulher será o que deve ser: rainha e senhora de uma família digna, livre de qualquer necessidade econômica premente;, escreveu. Nove meses depois, Evita sucumbiu ao câncer. Quase sete décadas se passaram e o feminismo da Argentina aproveita as eleições gerais do próximo domingo para impor uma agenda cujo principal assunto vai além do que Eva pensava, e é visto com reservas pelo atual presidente, Mauricio Macri: a legalização do aborto. A julgar pelas pesquisas, são grandes as chances de o peronismo retornar ao poder com a chapa Frente de Todos, composta pelo advogado Alberto Fernández e pela ex-presidente Cristina Kirchner.
O movimento feminista, que ganhou força com a marcha multitudinária Ni una menos, entre 2015 e 2016, se articula para ganhar espaço no espectro político argentino. Jornalista, ativista feminista e impulsionadora do movimento, Mariana Carbajal lembrou ao Correio que Fernández se pronunciou a favor da despenalização do aborto e do avanço em direção à legalização da interrupção da gravidez. Durante o debate com Macri, no último dia 13, ele foi bastante claro: ;Na Argentina, os abortos ocorrem e continuam a punir as mulheres. Tudo que se faz é criminalizar a conduta e transformar tudo em clandestinidade. Com a legalização, daremos oportunidades às mulheres pobres. Terminemos com a hipocrisia;, declarou o candidato peronista.
;Esperamos que o tema seja um dos principais da agenda legislativa de 2020;, disse a jornalista, autora dos livros Yo te creo, hermana (2019); Maltratadas: Violencia de género en las relaciones de pareja (2014) e El aborto en debate: Aportes para una discusión pendiente (2009). Carbajal entende que o debate travado pelo Congresso, no ano passado, favoreceu a despenalização social do aborto. Segundo ela, o assunto deixou de ser tabu e passou a ser discutido pelos meios de comunicação e dentro dos lares. ;Esse tem sido um aspecto muito positivo. Em termos legais, o aborto está permitido, desde 1921, para casos de risco à vida ou à saúde de mulher ou após estupro.;
Uma decisão de 2012 da Corte Suprema exortou os governos das províncias a adotarem protocolos de atenção. A maioria os aplica, ainda que persistam resistências de alguns setores médicos, segundo a ativista. ;De toda forma, cada vez se garante mais a atenção aos abortos legais. Ao mesmo tempo, um laboratório estatal começou a produzir o misoprostol, a droga usada para abortos com medicamentos, o que vai baratear o custo do procedimento para o setor público.; As estatísticas apontam que, na Argentina, se realizam 1.300 abortos por dia. Entre 1985 e 2016, 3.040 mulheres morreram.
Solução gradual
A advogada feminista Sabrina Cartabia, que defende os interesses da atriz Thelma Fardín (ela acusa o ator Juan Darthés de estuprá-la, quando menor de idade), afirmou ao Correio que se romperam travas culturais em relação ao aborto com os debates no Congresso, depois de sete tentativas malsucedidas. ;Estamos a poucos votos de mudar a lei. Alberto Fernández defendeu uma solução gradual para o aborto. Em um primeiro momento, seria a mudança do Código Penal, seguida pela implementação de mais acessos, rumo à legalização;, disse. Cartabia também aponta o feminicídio como um assunto de interesse social enorme, com o qual o próximo chefe de Estado será obrigado a lidar. ;A cada 30 horas, uma mulher é morta na Argentina. São cerca de 300 assassinatos por ano. O governo Macri não tomou qualquer medida para reverter esse quadro;, criticou.
Para Carbajal, ainda que a Argentina não registre as mais altas taxas de feminicídio da América Latina, a violência machista segue como grave tema. ;As respostas do governo não têm sido nem integrais nem efetivas. As autoridades estimulam as denúncias por parte das mulheres, mas depois as abandonam. É necessário que se garanta em toda o país a assistência jurídica gratuita, e que a Justiça incorpore a perspectiva de gênero. Muitas vezes, nos tribunais ou nas delegacias, não se acredita nas mulheres que denunciam ou não se ditam medidas que as protejam dos algozes;, lamentou.
Ela espera que o próximo ocupante da Casa Rosada promova a educação sexual integral, como forma de desarmar o machismo entre as novas gerações, e garanta a independência econômica das mulheres. Nas eleições do próximo domingo, a Argentina estreará a lei de paridade a nível nacional. Ela obriga os partidos políticos a apresentarem listas com metade dos integrantes de cada gênero. No entanto, também será a primeira vez que o país não contará com uma mulher disputando a Casa Rosada.
Pontos de vista
Pontos de vista
Por Mariana Carbajal
Retrocesso na agenda
;A gestão do presidente Maurício Macri significou um retrocesso para a agenda feminista: em primeiro lugar, degradou o Ministério da Saúde e o transformou em secretaria. Ficou claro, naqueles dias, que Macri impulsionou o debate sobre o aborto, seguramente para desviar a atenção em momentos nos quais a crise econômica se aprofundava, mas deu ordem aos legisladores de seu partido para que fizessem tudo possível para que não se aprovasse a legalização. Agora, vemos isso com mais clareza, dada a campanha com o slogan ;Salvemos as duas vidas;, o mesmo utilizado por grupos antidireitos. Durante o governo Macri, não se impulsionou a educação sexual integral, prevista em lei desde 2007, e esta é uma reclamação histórica do movimento feminista.;
Jornalista, ativista feminista argentina, impulsionadora do movimento Ni Una Menos
Por Sabrina Cartabia
Situação crítica
;O atual governo não desenvolveu políticas públicas eficientes, e subexecutou de maneira muito grave o orçamento que existia voltada aos direitos das mulheres. Nós estamos em uma situação crítica. É verdade que, nós, mulheres, não fomos um tema central na gestão de Mauricio Macri. Não fomos beneficiadas por esse governo.;
Advogada, feminista argentina