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A guerra de Piñera

Depois de falar em combate a "inimigo poderoso e implacáve", presidente discursa ao país, anuncia reunião com partidos de todos os setores, hoje, e cita plano de reconstrução, enquanto mantém repressão. Autoridades confirmam 11 mortos e 289 feridos

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 22/10/2019 04:15
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A polêmica declaração do presidente Sebastián Piñera teve efeito de combustível em um país ;incendiado; por protestos. ;Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada nem ninguém e que está disposto a usar a violência e delinquência sem nenhum limite, que está disposto a queimar nossos hospitais, o metrô, os supermercados, com o único propósito de produzir o maior dano possível;, afirmou. Ninguém menos do que o chefe da Defesa Nacional, o general Javier Iturriaga, tratou de se distanciar de Piñera. ;Eu sou um homem feliz. Na verdade, não estou em guerra com ninguém.; Às 20h30 de ontem, Piñera falou em rede nacional de TV, a partir do Palácio de La Moneda. ;Temos vivido dias tristes. (;) Fico indignado com os prejuízos e a dor que essa delinquência provoca;, disse, enquanto militares utilizavam bombas de gás lacrimogêneo e canhões d;água para dispersar a multidão que desafiava o toque de recolher. O presidente anunciou um ;plano de reconstrução; e uma reunião com partidos políticos de todos os setores do Chile, que deve ocorrer ainda hoje.

Mais cedo, a alta comissária dos Direitos Humanos da ONU e ex-presidente Michelle Bachelet exortara o governo a trabalhar com todos os setores da sociedade ;em soluções que contribuam para alcalmar a situação;. ;O uso de uma retórica inflamatória apenas servirá para agravar ainda mais a situação;, advertiu. A instabilidade política e social levou ao cancelamento de voos que tinham como origem e destino o Chile. A companhia aérea Latam suspendeu todos os voos entre as 19h de domingo e as 10h de ontem.

Até o fechamento desta edição, a Promotoria Nacional do Chile confirmava 2.151 prisões. Pelo menos 11 pessoas morreram desde o início dos protestos em todo o país. Professor de estudos internacionais da Universidad de Chile, Miguel Ángel López explicou ao Correio que o aumento das tarifas do metrô de Santiago foi ;a gota que transbordou do copo;. ;Há muito tempo, existia uma indignação, um mal-estar social latente pelo ritmo de crescimento do Chile e sobre a forma como se repartiam os benefícios desse tipo de progresso. Nos últimos anos, a desigualdade social se manteve com muita força;, disse.

Poucas horas antes do discurso de Piñera, López citava a expectativa sobre uma espécie de pacto social. ;Talvez a revisão daforma como se repartem os recursos neste país.; O especialista classificou como ;muito infeliz; a menção do presidente sobre ;guerra;. ;A última pessoa que disse ;estamos em uma guerra; foi o general Augusto Pinochet, três décadas atrás. Foi um erro político imenso de Piñera.; De acordo com López, o anúncio da reunião entre líderes de todos os partidos pode ser o início da solução. ;É a possibilidade de retificar muitas coisas do Chile democrático dos últimos 28 anos.;

Medo
Em Santiago, a engenheira de computação Tatiana Garrido Ortiz, 49 anos, se disse ;assustada; com os incidentes no Chile. ;Trata-se de uma insatisfação do povo chileno que vem se arrastando há muito tempo. Tivemos cinco presidentes, dos quais dois foram reeleitos e ficaram por quase 10 anos no poder. Em vez de a economia melhorar, a situação piorou;, lamentou, por telefone. Ela disse ter visto estudantes destruindo o metrô, carros e o que viam pela frente, na quarta-feira, e vários saques, três dias depois.

Sob a condição de não ter o nome divulgado, uma moradora de Valparaiso ; a 122km de Santiago ; contou que a cidade é palco de ;grande repressão;. ;O panorama é muito complicado. Vi e escutei disparos dos soldados contra os manifestantes. O governo não escuta as pessoas e não compreende o mal-estar generalizado. O governo fracassou, e uma solução possível é a renúncia do presidente.; Também de Valparaiso, a professora Karen Parada, 41, contou que vive em um morro a 10 minutos do centro. ;Estamos sob toque de recolher desde as 18h de hoje (ontem). Não há supermercados abertos desde domingo. Há enfrentamentos entre civis e militares, que reprimem marchas.;

Brasileiros foram surpreendidos pelo caos. A psicóloga paulista Tally Tafla, 25 anos, estava retida em Puerto Varas, a 1.008km ao sul de Santiago. ;A cidade é bem pequena, mas houve manifestações e panelaços. Por volta das 18h30, ficamos sem energia elétrica. Meu voo pela Latam até a capital foi cancelado;, afirmou Tally, que viajou para um congresso regional sobre autismo. Natural de Belo Horizonte, o designer Ramon Correa, 27, vive há seis meses em Santiago. ;Vi pessoas correndo assustadas em meio a disparos. Militares estão por toda a cidade, e até ontem (domingo), havia um tanque de guerra na Plaza Itália.;


Três perguntas para


Fernando Schmidt, embaixador do Chile no Brasil

Como o senhor vê o fato de os protestos não terem diminuído, mesmo depois que o presidente Sebastián Piñera cancelar o aumento das tarifas do metrô?

Há muitas razões que podem explicar o fenômeno. Uma delas, tal como disse o presidente Piñera ontem (domingo), é que estamos diante de ;um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada nem ninguém, que está disposto a usar a violência e a delinquência sem nenhum limite, inclusive quando isso significa perda de vidas humanas;. O governo está fazendo todo o possível para aumentar a base de apoio de todos os chilenos para condenar a violência. No domingo, Piñera se reuniu com os presidentes do Senado, da Câmara dos Deputados (ambos de oposição) e da Corte Suprema de Justiça para coordenar e facilitar caminhos de solução à grave situação de violência, mas também para atender com urgência as prioridades de nossos compatriotas e visar reduzir as desigualdades.

O Chile é uma das nações mais desenvolvidas da América do Sul, mas também das mais desiguais. A desigualdade social e a insatisfação popular pesam nesses protestos?
Pode ser um fator. Conscientes disso ; e apesar de termos avançado muito em fechar a lacuna da desigualdade ;, o presidente Piñera tem assinalado que ;compreende perfeitamente aqueles que protestam, que se manifestam por terem carências e privações, por sentirem que não temos entregado o que lhes corresponde;. Além disso, ele se comprometeu com seu maior esforço ;para melhorar as pensões, reduzir o preço dos medicamentos, conseguir que todos os chilenos tenham oportunidade de vida mais plena e mais feliz;.

Muitos acusam o presidente de autoritarismo, ao declarar estado de exceção e ao mobilizar o Exército, que estaria usando de força desproporcional. O que pensa sobre isso?
É uma leitura totalmente sem fundamento. Basta ver a conduta das Forças Armadas e da Ordem, assim como a acolhida que tiveram em setores vulneráveis do Chile. A responsabilidade de todo governo é salvaguardar a ordem pública, contribuir com a segurança e a tranquilidade de seus cidadãos, e proteger os direitos das pessoas que se veem fortemente afetadas pelos atos de violência. (RC)


Povo fala


Aldo Caputo Neira,
70 anos, contador, morador de Santiago do Chile
;O presidente disse estar em guerra contra esses bandidos, que não possuem uma bandeira de luta e querem ocasionar caos e pânico. Há uma grande tensão no ar, mas acho que isso não chegará a uma revolução, ainda que possamos estar próximos desse cenário.;


Ramon Correa,

27 anos, designer de Belo Horizonte, vive em Santiago há 6 meses
;As coisas saíram do controle por vários motivos, mas a resposta do governo foi um dos principais. Há ações extremas de ambas as partes, e muitas pessoas se aproveitam da situação para provocar desordem. Dezenas de mercado


Miguel Ángel López,
professor de Estudos Internacionais da Universidad de Chile
;O toque de recolher em Santiago e em cidades do Chile foi algo muito complicado. Isso porque chamaram os militares às ruas, o que trouxe lembranças da época da ditadura de Pinochet. Dado o nível de saques, talvez o presidente não tivesse alternativa.;


Marcos Soto,
34 anos, agente turístico, morador de Valparaiso
;Vivo muito perto do centro, que tem sido um campo de batalha. Nada funciona no país, e os protestos são reprimidos com força. A mídia só mostra o pior da delinquência.;




Crescem suspeitas de fraude nas eleições da Bolívia


Uma crescente suspeita de fraude nos resultados eleitorais a favor do presidente Evo Morales tomou conta de muitos bolivianos ontem, que participaram de vigílias em torno de algumas sedes regionais dos tribunais eleitorais ; as quais ainda não confirmaram se haverá segundo turno. Sem os dados dos votos das áreas rurais e do exterior, com os quais Morales conta para vencer no primeiro turno, o Órgão Eleitoral Plurinacional (OEP) não havia atualizado, até o início da tarde, os resultados preliminares, produto de uma apuração rápida. Até o momento da interrupção da apresentação dos dados, no domingo à noite, Morales, que busca o quarto mandato consecutivo, tinha 45,28% contra 38,16% de Carlos Mesa, com 84% dos votos apurados, indicando assim tendência de um segundo turno em 15 de dezembro. Candidato presidencial da oposição, Mesa (foto) denunciou a suposta intenção de Morales de ;manipular;, por meio do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE), o resultado das eleições e evitar o segundo turno. ;Quero, através dos meios de comunicação, denunciar sem nenhum tipo de matiz que o governo está tentando, através do Tribunal Supremo Eleitoral, eliminar o caminho para o segundo turno;, afirmou Carlos Mesa.

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