Afundada na pior crise econômica desde 2001, a Argentina escolheu o retorno do peronismo, com a eleição de Alberto Fernández e da vice, Cristina Kirchner, no primeiro turno. O resultado ; 47,66% contra 41,88% do atual mandatário, com mais de 90% das mesas apuradas ; foi mais apertado do que as pesquisas apontavam. Segundo analistas, sinaliza para um país dividido, ao mesmo tempo em que fortalece o nome de Mauricio Macri como líder da oposição nos próximos quatro anos. Às 22h30, o presidente reconheceu a derrota e cumprimentou o adversário de centro-esquerda, com quem deve se reunir hoje para discutir a transição.
Enquanto o bunker de Fernández e de Cristina Kirchner, da coalizão Frente de Todos, comemorava a vitória, técnicos do Banco Central argentino preparavam-se para passar a noite discutindo medidas de controle do dólar, em um cenário repleto de incertezas. O programa econômico dos vencedores é considerado pouco esclarecedor e há dúvidas sobre a relação que será estabelecida com credores e parceiros comerciais, como o Brasil. Fernández, porém, passou a campanha tranquilizando os eleitores e o mercado: ;Sinto-me um liberal de esquerda, um liberal progressita. Acredito nas liberdades individuais e acho que o Estado tem de estar presente para o que o mercado precisar;.
Até o fechamento desta edição (0h00), o governo brasileiro não havia cumprimentado o peronista pela vitória. Mais cedo, dos Emirados Árabes, o presidente Jair Bolsonaro adotou um tom mais conciliatório do que vinha exibindo nos últimos dias. Comentando as eleições no país vizinho antes do início da votação, ele afirmou que pretende ;ampliar qualquer comércio com a Argentina; e disse esperar que Fernández não abandone o Mercosul. ;Esperamos que aquilo que ele falou há pouco, quando visitou (o ex-presidente) Lula no Brasil, sobre rever a questão do Mercosul, que ele volte atrás;, declarou. Ontem, Fernández reforçou o apoio a Lula, ao comemorar o aniversário de 78 anos do ex-presidente. ;Faz aniversário hoje o meu amigo Lula, um homem extraordinário que está preso injustamente;, escreveu em sua conta no Twitter. Ele também publicou uma foto fazendo uma letra L com a mão.
A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás da China e dos Estados Unidos. Um agravamento da crise econômica do principal importador da indústria brasileira poderá afetar ainda mais as vendas, que já caíram 40% no primeiro semestre, comparado ao ano passado. Segundo a Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), desde 2003 o deficit comercial não era tão baixo, um problema que preocupa especialmente o setor automotivo: 60% dos carros argentinos são produzidos no Brasil.
Desafios
Ao assumir a Casa Rosada, em 10 de dezembro, Fernández terá o desafio de conter a inflação na casa dos 38%, o desemprego em 10,6% e a pobreza passando de 35%, sendo 7,7% de indigentes. Desde o segundo trimestre do ano passado, o país está em recessão, com queda de 2,5% no Produto Interno Bruto (PIB) em 2018. Durante a campanha, o presidente eleito afirmou que o setor industrial, que mais sofreu, com fechamento de fábricas, será um pilar da recuperação.
Queda no consumo e taxas de juros de até 80% para tentar conter a fuga de divisas desafiam o crescimento econômico de um país que acumula US$ 315 bilhões em dívidas, o equivalente a 68% do PIB. Em julho de 2018, Macri recorreu ao Fundo Monetário Internacional (FMI), que concedeu ao país um empréstimo de US$ 57 bilhões em troca de um ajuste fiscal que freou ainda mais a economia. Ainda falta a liberação de US$ 13 bilhões. Sem dizer como, Fernández afirmou que a Argentina descarta o calote. Mas deixou claro: só pagará os credores à medida que o país volte a crescer.
Intervencionismo
Os investidores temem que a vitória de Fernández implique o retorno das políticas intervencionistas do kirchnerismo (2003-2015). Os argentinos já deram demonstrações de pânico. Desde as primárias, houve saques em moeda americana que superaram US$ 12 bilhões de dólares (36,4% do total). Somente na sexta-feira, o Banco Central perdeu outros US$ 1,755 bilhão em reservas para frear a desvalorização da moeda. Hoje ;haverá muita pressão sobre o peso e sobre os bancos, mas os mercados já anteciparam os resultados, a reação não será tão brutal como após as primárias de agosto;, tranquiliza Nicolás Saldías, pesquisador do Wilson Center
Mas além dos mercados, precisa dar segurança aos milhões de pessoas que votaram em Macri. ;Fernández deverá restaurar a confiança no kirchnerismo. Nos próximos meses e até assumir, Macri será o presidente, e Fernández terá o poder;, explica Saldías. ;Têm que dar sinais de que trabalham juntos; caso contrário, a situação se tornará insustentável;, adverte. No discurso a seus seguidores, no qual admitiu a derrota, o presidente garantiu que a população não precisa se preocupar. ;Acabo de falar com ele (Fernández) sobre a grande eleição que fizeram. Convidei-o a tomar café da manhã amanhã (hoje) na Casa Rosada, porque temos que começar um período de transição ordenada, que leve tranquilidade aos argentinos;, disse.
Golpe de Estado
O presidente da Bolívia, Evo Morales, afirmou ontem que seus adversários preparam um golpe de Estado ;para esta semana;, a segunda advertência do tipo em cinco dias, em meio a uma greve e a protestos contra a vitória eleitoral no primeiro turno. O Tribunal Eleitoral (TSE) boliviano anunciou na sexta-feira a vitória de Morales no primeiro turno com 47,08% dos votos válidos, contra 36,51% do principal concorrente, Carlos Mesa. O opositor disse não reconhecer a vitória de Morales, por ser ;resultado de uma fraude;.