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Poder contestado

Especialistas atribuem levantes sociais em países da região à fragilidade democrática, à incapacidade dos sistemas políticos de processarem demandas populares e ao neoliberalismo. Ex-secretário-geral da Unasul e ex-presidente da Colômbia fala ao Correio

Correio Braziliense
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postado em 03/11/2019 04:15
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Manifestantes reprimidos pelas forças de segurança, em cenas que remontam aos anos de chumbo. O mês de outubro cortejou as memórias da ditadura na América do Sul. Tudo começou no Equador, quando o direitista Lenín Moreno pôs fim aos subsídios sobre os preços dos combustíveis, o que levou a uma alta exorbitante. Os confrontos com a polícia deixaram oito mortos. Onze dias depois, Moreno retrocedeu e anulou o decreto. Outra revolta social impactou o Chile, e um protesto contra o aumento na tarifa do metrô se tornou ato contra o também direitista Sebastián Piñera. Acuado, o presidente impôs toque de recolher em Santiago e nas principais cidades do país. Saques, violência e reação desmedida dos militares fizeram 23 mortos nas últimas duas semanas. Na Bolívia, suspeitas de fraude nas eleições que deram o quarto mandato ao socialista Evo Morales também detonaram um levante popular. Especialistas consultados pelo Correio atribuem a instabilidade nessas nações a uma crise dos processos democráticos na região.

Professor de política comparativa e da América Latina pela London School of Economics (LSE), o uruguaio Francisco Panizza admite que as democracias nessa área do planeta sofrem de um conjunto de debilidades importantes. ;Elas incluem fragilidades dos mecanismos de representação política, tais como partidos; percepções de que os governos beneficiam poucos, e não a maioria da população; serviços públicos de má qualidade; altos níveis de corrupção; e quase nenhuma confiança nas instituições;, observa. ;Se a isso somarmos níveis de desigualdade bastante altos e economias que cresceram pouco ou nada nos últimos cinco anos, temos todos os ingredientes para o mal-estar político atual.;


Panizza recorda que o Brasil e o Chile eram reconhecidamente as democracias mais consolidadas da América Latina. ;Os eventos dos últimos anos e das últimas semanas nos mostram que importantes patologias políticas e sociais estavam ocultas por trás dessa percepção, especialmente sistemas políticos com baixa capacidade de processar demandas sociais legítimas, além da falta de mecanismos institucionais de participação política;, comentou. A recente eleição da chapa peronista Alberto Fernández;Cristina Kirchner na Argentina sugere, segundo Panizza, que a democracia está muito mais arraigada. ;As recentes eleições são exemplo de sistema político organizado em um bloco de centro-esquerda e em um de centro-direita, sem espaço para atores extrainstitucionais;, disse. ;No caso do Brasil, houve uma ;tormenta perfeita; entre 2015 e 2017, com a combinação da recessão e da Operação Lava-Jato. Além do que se pensa do governo de Jair Bolsonaro, creio que o sistema político tem condições de se recompor em algo melhor, mas isso levará tempo. Enquanto isso, as instituições políticas têm um papel muito importante em limitar as tendências antidemocráticas.;


Tensões

Para Juan Battaleme, especialista em defesa e em política externa do Centro de Estudios Macroeconómicos de Argentina (Cema), existem diversos graus de institucionalização dos processos democráticos na América Latina. ;O principal problema é que esses processos não canalizam nem resolvem tensões sociais, as quais se dirimem nas ruas, como ocorre sempre em todos os movimentos que emergem de sistemas políticos em crise;, explicou. Ele adverte sobre o risco de convulsão social no Brasil e lembra que ele se insere na instabilidade dos oficialismos, perpassando rótulos de esquerda ou direita. ;Quando os oficialismos são de direita ou ;não populares;, as expressões ;anti; se tornam muito abertas e explícitas. A resistência à potencial instauração de governos populistas é igual em todos os países. Não se trata de falar de ganhadores e perdedores, mas da expectativa de milhares de homens e mulheres sobre seu futuro e sua integração funcional na sociedade.;


O boliviano Máximo Quitral ; diretor do Instituto de Política Latino-Americana (Ipolat), em Santiago do Chile ; entende que as democracias sul-americanas não estão robustas e enfrentam reverberações das ditaduras. ;Os fantasmas dos golpismos seguem presentes. O presidencialismo é uma fórmula um tanto esgotada, precisa de revisão, pois não soube apresentar solução concreta ao mal-estar popular;, explicou. Segundo Quitral, os protestos no Equador, e em especial no Chile, respondem a uma dor social contra o sistema neoliberal. Ele acusa os governos de direita de impulsionarem medidas que têm reforçado o neoliberalismo. ;O que se observa é um cansaço social de um sistema econômico que privilegia a minoria, em detrimento da maioria. Se, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro pensa em aplicar medidas similares às impulsionadas no Chile, as probabilidades de convulsões sociais são altíssimas, sobretudo pelo fato de o país estar bastante polarizado.;

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