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Festa envergonhada

Cerimônias discretas, sem grandes atrações internacionais, lembram hoje os 30 anos da queda do Muro de Berlim, marco do fim da Guerra Fria. O país exalta os valores da democracia sobre o pano de fundo da ascensão da extrema-direita

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 09/11/2019 04:06
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Berlim recebeu milhares de turistas nos últimos dias e, desde o início do mês, assiste a uma maratona de exposições que lembram os 30 anos desde que veio abaixo, de maneira súbita e inesperada, a barreira de concreto que dividiu por 28 anos a capital histórica da Alemanha. Com o Muro de Berlim, veio abaixo na noite de 9 de novembro de 1989, sem o disparo de um tiro sequer, sem um único incidente de violência, o marco mais sólido da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética. Hoje, porém, ao contrário do que ocorreu em outras datas ;redondas;, as comemorações serão contidas. E o motivo, de acordo com os que observam o cenário poítico alemão e europeu, é a ascensão, nos últimos anos, de uma extrema-direita que flerta com algunas das bandeiras do nazismo, como a ;pureza; étnica e a rejeição aos imigrantes.

;A atmosfera de renovação sentida há 30 ou há 10 anos, não é mais perceptível hoje;, lamenta o conselheiro da prefeitura da capital alemã para assuntos de cultura, Klaus Lederer. ;A cidade quer comemorar o aniversário, mas estamos preocupados;, admite. Ele cita como origens de receio, entre outras, as recentes vitórias eleitorais de Donald Trump, para a presidência dos Estados Unidos, e de Jair Bolsonaro, para governar o Brasil ; ambos afinados com a direita populista que vem fazendo avanços na Europa e, em particular, com a Alternativa para a Alemanha (AfD), que se firma como a segunda força política nos estados que, até a reunificação do país, em 1990, integravam o regime comunista da metade oriental.

Cinco anos atrás, a noite histórica de 9 de novembro foi lembrada com delicadeza espirituosa. Durante dias, o traçado do Muro foi reproduzido com balões, que foram liberados para o céu na mesma hora em que, 25 anos antes, as autoridades orientais anuciaram que os cidadãos estavam livres para cruzar a fronteira da Guerra Fria e visitar Berlim Ocidental, templo da opulência capitalista. No aniversário de 20 anos, a comemoração foi ainda mais significativa: os principais líderes mundiais, como os presidentes dos Estados Unidos (Barack Obama, na época) e da Rússia (Vladimir Putin, ainda hoje), empurraram simbolicamente uma placa que reproduzia uma das unidades que compunham a antiga barreira entre as esferas de influência das duas superpotências ; e, ao longo da linha divisória sobre a qual foi erguido em 1961, uma réplica do muro deitou sobre o solo como uma sequência de peças de dominó.

A agenda das comemorações para o 30; aniversário é incomparavelmente mais modesta. Desde o início de novembro, alguns dos edifícios-marcos de Berlim vêm cedendo a fachada para a projeção de imagens históricas do Muro e dos que ousaram desafiar a divisão da Alemanha. Cenas como as da noite de 9 de novembro de 1989, ou a de um soldado alemão-oriental saltando a linha divisória para o lado ocidental, nas vésperas da construção da barreira física, ajudaram a lembrar as quatro décadas em que a cidade cresceu dividida e sob ocupação dos exércitos vencedores da 2; Guerra Mundial.

Hoje, porém, a chanceler (chefe do foverno federal) Angela Merkel discursará em companhia apenas dos governantes dos países vizinhos que integraram o bloco pró-soviético do Leste Europeu: Hungria, Polônia, República Tcheca e Eslováquia. Mais tarde, o presidente da Alemanha,Frank-Walter Steinmeier, discursará diante do Portão de Brandemburgo, no coração político da cidade.

Ainda divididos
Antecipando o tom de uma comemoração reflexiva e autocritica, o prefeito Michael Müller, do Partido Social Democrata (SPD), invocou dias atrás o espírito das grandes manifestações pela democracia na metade comunista do país, em 1989, para renovar o compromisso com os ideais festejados desde 1989. ;É preciso que todos se comprometam com a liberdade de imprensa, de opinião, de culto;, discursou Müller na emblemática Alexanderplatz, a praça onde um milhão de alemães-orientais deram o xeque-mate no regime comunista, menos de uma semana antes da queda do Muro.

O apelo aos valores democráticos ganha eco diante dos resultados conquistados pela ultradireita, desde setembro, na ex-Alemanha Oriental. Embora não saia do patamar de 10% dos votos na metade ocidental, a AfD oscila entre 20% e o limite dos 30% nos estados ;além-muro;. ;A socialização política em sociedades distintas, até opostas, assim como as diferentes experiências vividas após a reunificação abriram um fosso que ainda está aí, e até se alargou nos últimos 10 anos;, analisa, em entrevista ao Correio, o cientista político Klaus Schr;der, da Universidade Livre de Berlim (leia abaixo).

;A política mundial cai em uma ladeira extremamente perigosa;, adverte o último presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachov, cuja decisão de não intervir em defesa do regime aliado, há 30 anos, foi determinante para o desfecho pacífico da crise. Reverenciado até hoje na Alemanha, embora rejeitado na Rússia, Gorbachev aproveitou a passagem da data para convocar Washington e Moscou a não permitirem um retrocesso ao clima da Guerra Fria: ;Não construam novos muros;.


;A política mundial cai em uma ladeira extremamente perigosa. Não construam novos muros;
Mikhail Gorbachov, último presidente da União Soviética



>> entrevista Klaus Schr;der


Diferenças persistem

Como o senhor vê o crescimento da AfD nas recentes eleições regionais no leste?
A AfD soube, com inteligência, usar em seu favor a insatisfação com as políticas da chanceler Angela Merkel, em especial sobre imigrantes e refugiados. Por um lado, funciona como um partido de protesto, um lugar que tomou do partido da Esquerda. Por outro lado, a AfD se afirma como porta-voz de uma orientação bastante conservadora e nacionalista.

Depois de ter superado a Esquerda e a social-democracia, a extrema-direita ficou à frente da democracia-cristã, da chanceler Merkel, nas eleições da Turíngia. A AfD está a caminho de se tornar a primeira força política nos estados do leste?
Isso pode muito bem se tornar verdade, se o SPD e a CDU continuarem governando em coalizão na esfera federal e não souberem explicar as suas políticas para as pessoas, principalmente no leste. Mas se o fluxo de imigração diminuir e, assim esperamos, também os incidentes criminais envolvendo os estrangeiros, e ainda se aflorarem as disputas internas no partido, pode acontecer de a AfD recuar de novo, eleitoralmente, nos anos seguintes.


Por muitos anos, depois da reunificação, o apoio recebido no leste pelos neocomunistas da Esquerda era uma das expressões das diferenças com o oeste da Alemanha. Agora, passados 30 anos, o que está acontecendo é apenas que essa tendência se manifesta no apoio à extrema-direita?
Continuam existindo diferenças entre os alemães ocidentais e orientais, em especial nas faixas etárias mais avançadas. A socialização política em sociedades distintas, até opostas, assim como as diferentes experiências vividas após a reunificação abriram um fosso que ainda está aí, e até se alargou nos últimos 10 anos. Na Turíngia, os partidos populistas de esquerda e de direita conquistaram a maioria absoluta dos votos. Nos estados ocidentais, eles têm metade dessa força eleitoral. Ou seja, as diferenças entre leste e oeste se expressam também nas urnas.

É possível diferenciar a AfD de grupos violentos de extrema-direita?
Sim, precisamos diferenciar entre forças moderadas e radicais dentro da própria AfD. Com certeza, ela tem militantantes extremistas, mas também muitos que seria melhor definir como ;nacional-conservadores;.

O senhor consegue imaginar, em um futuro visível, a AfD sendo aceita como parceira de governo por outros partidos?
Se a AfD se reorientar fortemente na direção de se tornar uma força nacional-conservadora moderada, é possível que se torne um aliado potencial ao menos para a CDU. Mas ela vai continuar sendo rejeitada caso sejam os radicais os que derem o tom.

A entrada em massa de imigrantes e os problemas econômicos têm sido apontados como os principais fatores para o crescimento da AfD no leste.
Ele tem também alguma relação com o passado autoritário da Alemanha Oriental?
A crise da imigração, a partir de 2015, é o principal motivo para a forte ascensão da AfD no leste. O desemprego por lá se reduziu muito nos últimos anos, e os problemas econômicos atuais não são muito piores que os de muitas regiões ocidentais. Mas é verdade que entre os alemães-orientais mais velhos persiste um pensamento autoritário sobre o Estado, e isso tem ajudado a AfD. (SQ)

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