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Conexão diplomática

Por Silvio Queiroz silvioqueiroz.df.@dabr.com.br

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 09/11/2019 04:07
[FOTO1]De cara com a
queda do Muro


Quem acompanha a coluna haverá de registrar que hoje me permito uma abordagem algo mais pessoal sobre um tema que domina a última semana. A vida profissional me permitiu acompanhar de perto os momentos que se seguiram à queda do Muro de Berlim, há exatos 30 anos. Era talvez o símbolo mais visível e concreto ; principalmente isso ; do mundo dividido que saiu da 2; Guerra Mundial. Cresci aprendendo que havia duas Alemanhas, duas Coreias, dois Vietnãs. E por quase 30 anos parecia que nada mudaria tão cedo nessa geografia... até que veio o furacão de 1989, em parte soprado pela passagem meteórica de Mikhail Gorbachov pelo poder na União Soviética.

Desembarcar em Berlim, naquele novembro, era como embarcar no ;trem da história;, tão falado nos textos teóricos e nas discussões algo acadêmicas. Meio século desfilando diante dos olhos sem que se pudesse pressionar algum botão de ;pausa;: os acontecimentos se sucediam sem trégua, colocavam em jogo concepções e crenças curtidas por décadas. E, entre as póuquíssimas certezas, a de que era todo um mundo que se esfacelava como as placas de concreto do Muro, abatidas a golpes de picareta por uma geração de alemães que agarrava nas mãos a oportunidade, talvez única, de virar a página de um período sombrio no qual seu destino parecia inapelavelmente atrelado às conveniências de Washington e Moscou.

Túnel do tempo
A fronteira interalemã, especialmente na antiga capital, era imagem tornada familiar pelos filmes. ;Você está deixando o setor americano;, alertava a placa exposta por décadas no acesso ao famoso Checkpoint Charlie, principal passagem entre Berlim Ocidental e Berlim Oriental durante os 40 anos de Guerra Fria e divisão. Olhar o aviso a olho nu, tocar com as mãos e, principalmente, ingressar no labirinto burocrático que separava dois mundos no intervalo de 100 ou 200 metros, era outra coisa.

Atravessar o muro, ainda em pé ao longo da maior parte do traçado original, era como se aventurar pelo túnel do tempo. No intervalo de alguns tantos minutos, dificilmente mais de meia hora, a sensação que se tinha ao chegar na outra extremidade dos corredores estreitos era a de retroceder algo como duas décadas. Em Berlim Oriental, os carros me lembravam a infância na São Paulo dos anos 1960. O figurino dos moradores davam a mesma impressão: camisas de flanela quadriculadas, como as que compunham a nossa indumentária das festas juninas, e calças que chamávamos de ;rancheiras; ; um brim tosco de uma geração anterior a esse que nos acostumamos a chamar de jeans.

Preço de banana
Foi em uma manhã em uma praça de Berlim Ocidental, com o esqueleto do Muro à vista, que entendi definitivamente o sentido e a origem da expressão ;a preço de banana;. Nas semanas e meses que se seguiram à abertura para que saíssem do país a passeio, os alemães-orientais eram recebidos pelo capitalismo do lado ocidental com o begrüssungsgeld, algo como ;dinheierinho de boas-vindas;. A mim, fazia lembrar visitas àquele tio rico que, no fim de semana, fazia um agrado para que a gente pudesse comprar guloseimas, ir ao cinema ou ao circo ; enfim, se divertir.

Naqueles dias de novembro de 1989, os ;ossis;, como eram chamados os alemães-orientais, começavam a manhã fazendo filas com os passaportes para receber o begrüssungsgeld, a que tinham direito na primeira visita ao ocidente. E ali mesmo, em volta das kombis onde o dinheiro era distribuído, vi a pequena multidão aglomerada em torno de um comerciante que, do alto de um tipo de palanque, vendia bananas. A fruta era algo rara além-muro. Os recém-chegados erguiam as mãos exibindo os marcos ocidentais. O dono das bananas atirava a quantidade correspondente ao valor e os auxiliares recolhiam o pagamento.,

No início da tarde, os ;ossis; passavam em procissão no sentido contrário. Garotos e garotas envergavam sorridentes os agasalhos recém-comprados: já se viam menos ;estrangeiros;. Os adultos carregavam sacolas de compras. Adolescentes colocavam no último volume os aparelhos de som, no mais das vezes reproduzindo o rock heavy metal que até ali só podiam ouvir na surdina, captando as FMs ocidentais.

O guarda da esquina
Às vésperas de o Brasil mergulhar na noite escura do AI-5, em dezembro de 1968, o então vice-presidente Pedro Aleixo, o civil que no ano seguinte seria preterido sem qualquer cerimônia pelos militares quando um derrame tirou de cena o marechal-presidente Costa e Silva, comentava que seu receio, no autoritatismo, era ;o guarda da esquina;, investido de poderes absolutos por uma peça jurídica. Em Berlim Oriental, o ;guarda da esquina; poderia estar exatamente no guichê pelo qual se passava para cruzar entre os dois setores da cidade. Certa noite, depois de quase uma semana fazendo diariamente o trajeto, topei com um deles justamente no famoso Checkpoint Charlie. Olhou e folheou o passsaporte, gastou minutos preciosos (para mim) ao telefone com alguma autoridade superior até por fim liberar a passagem ; tarde demais para seguir de metrô até a Alexander Platz, onde estava hospedado.

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