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Transição à revelia

Jeanine Áñez, senadora da oposição, ignora a falta de quorum durante sessão do Parlamento e se proclama presidente interina, ao invocar a Constituição. Exilado no México, Evo Morales denuncia o "golpe mais nefasto" da história. Brasil reconhece nova líder

postado em 13/11/2019 04:06
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Mesmo a 5.818km de La Paz, o ex-presidente Evo Morales tentou influenciar a bancada do Movimento ao Socialismo (MAS) na Assembleia Legislativa Plurinacional da Bolívia. Não surtiu efeito prático. Pouco antes das 19h de ontem (20h em Brasília) e mesmo sem quorum dos congressistas da esquerda, a senadora Jeanine Añez se proclamou presidente interina da Bolívia, em uma manobra considerada controversa por especialistas. ;Assumo de imediato a Presidência do Estado e me comprometo a assumir todas as medidas necessárias para pacificar o país;, declarou, ante um plenário vazio. ;Queremos convocar novas eleições o mais cedo possível (...), com autoridades probas, de mérito, de capacidade, que sejam independentes.;

Minutos depois, usando a faixa presidencial e segurando a Bíblia, fez um rápido discurso na sacada do Palacio Quemado e chamou à unidade. ;É um compromisso que assumimos com o país, e vamos honrá-lo;, avisou. Pediu um minuto de silêncio pelos mortos nos protestos e agradeceu às forças de seguranças.

Pouco antes, no primeiro dia como asilado político na Cidade do México, Morales parabenizou os congressistas de seu partido ;por atuarem com unidade e dignidade para rechaçar qualquer manipulação da direita racista, golpista e vendedora da Pátria;. Evo se referia à ausência dos parlamentares do MAS, que controlam dois terços das duas casas, durante a histórica sessão legislativa.

Morales usou as redes sociais para comentar a posse de Añez. ;Consumou-se o golpe mais astuto e nefasto da história. Uma senadora de direita golpista se autoproclama presidenta do Senado e, depois, presidenta interina da Bolívia sem quorum legislativo, rodeada de um grupo de um grupo de cúmplices e liderada pelas Forças Armadas e pela polícia, que reprimem o povo;, escreveu em seu perfil no Twitter. ;Denuncio ante a comunidade internacional que o ato de autoproclamação de uma senadora como presidente viola a Constituição da Bolívia e normas internas da Assembleia Legislativa. Consome-se com o sangue de irmãos mortos pelas forças policias e militares usadas para o golpe.;

Um dos principais nomes da oposição, o ex-presidente centrista Carlos Mesa parabenizou a ;nova presidente constitucional; da Bolívia e opinou que, com a posse de Añez, o país consolida ;sua vocação democrática e a coragem de uma ação popular legítima, pacífica e heroica;. Outro líder opositor, Luis Fernando Camacho, do Comitê Cívico Pró-Santa Cruz, discursaria à 0h de hoje (1h em Brasília) em La Paz.

Também ontem, o Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA) fez uma reunião extraordinária em que 15 países ; incluindo Brasil, Argentina, Chile, EUA, Peru e Venezuela (representada por um delegado do líder opositor Juan Guaidó ; exortaram a Bolívia a realizar novas eleições ;o mais cedo possível, com garantias expressas de que o processo eleitoral ocorra com justiça, liberdade, transparência e respeito à vontade soberana do povo boliviano;.

Problema político
Marcelo Arequipa, doutor em ciência política e professor da Universidade Católica Boliviana de La Paz, afirmou ao Correio que a decisão de Añez de tomar posse como mandatária ;pode reforçar a ideia de golpe de Estado;. ;Estamos diante de um problema político, não jurídico. Suspeito que a posse de Añez não conseguirá pacificar o país. Não se pode governar com base em sentimentos negativos, como a vingança e o medo. Tomara que a senhora Añez esteja à altura das circunstâncias para dar uma resposta rápida ao problema político que vivemos;, comentou. Segundo Arequipa, a autoproclamação da senadora faz parte de uma estratégia para entorpecer a saída política institucional. ;Suspeito que continuaremos com os níveis de violência, mas isso somente saberemos amanhã (hoje), caso os setores leais a Morales se mobilizem. Mas, antevejo um duro protesto contra Añez por parte do MAS.;

Para Yercko Illijic, professor de direitos humanos da mesma universidade de Arequipa, Añez aplicou um mecanismo com sentença constitucional para ser empossada como presidente, mesmo sem o aval dos deputados e senadores simpatizantes de Morales. ;Foram aplicados regulamentos internos do Senado e da Câmara. O MAS desejava o obstrucionismo. A ausência de seus parlamentares na sessão foi uma jogada política ruim;, disse. Illij acredita que Añez deve se focar em três ações para buscar recompor a estabilidade do país. ;Em primeiro lugar, convocar uma reestruturação do Tribunal Supremo Eleitoral para viabilizar eleições gerais. Em segundo, convocar o pleito. Em terceiro, armar um gabinete que assegure a continuidade financeira do aparato público estatal;, acrescentou.


Uma conservadora
chega ao poder



Aos 52 anos e senadora pelo departamento (estado) de Beni, a nova presidente da Bolívia, Jeanine Áñez, nasceu em San Joaquín em 13 de junho de 1967. Entre 2006 e 2008, atuou como deputada da Assembleia Constituinte e ajudou a redigir a nova Carta Magna do país. Também participou da comissão de organização e da estrutura do novo Estado, atuando também no âmbito do Poder Judiciário. m 2010, foi eleita senadora pelo partido Plan Progreso para Bolívia - Convergência Nacional (PPB-CN). Na noite de ontem, o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, disse a repórteres, ao chegar a um jantar com autoridades do Brics, que a Constituição boliviana está sendo seguida e que o Brasil reconhece que ;todos os ritos são cumpridos e, portanto, Áñez assume legalmente;.


Bastidores

Brasil refuta tese de destituição
Em nota, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil informou que o governo de Jair Bolsonaro acompanha com grande atenção a situação pela qual atravessa a Bolívia. ;O governo brasileiro rejeita inteiramente a tese de que estaria havendo um ;golpe; na Bolívia. A repulsa popular após a tentativa de estelionato eleitoral (constatada pela OEA), o qual favoreceria Evo Morales, levou à sua deslegitimação como presidente e consequente clamor de amplos setores da sociedade boliviana por sua renúncia;, afirma.

Intimidação nos céus de La Paz
Enquanto simpatizantes de Evo Morales marchavam na Plaza San Francisco, de La Paz, caças e outros aviões militares sorevoavam a capital boliviana. A Força Aérea da Bolívia justificou os voos rasantes à necessidade de monitorar os protestos.

Símbolo pátrio indígena preservado


Antes mesmo de ascender ao poder, a senadora Jeanine Áñez tentou aplacar os ânimos entre os indígenas. Ela prometeu manter a whipala como símbolo pátrio. ;Todos somos iguais, é o momento de ressaltar a unidade e a igualdade;, declarou, segundo o jornal El Deber. Formada por 49 quadrados com as cores do arco-íris, a Wiphala representa o planeta Terra, a sociedade e a cultura, a energia e a força, o tempo e a dialética, a economia e a produção, o espaço cósmico e o infinito, e a política e a ideologia. É o símbolo dos povos indígenas da América.

Mercenário processará Evo
O húngaro Elód Tóásó, um dos dois sobreviventes no caso dos mercenários condenados por planejar em 2009 um atentado contra Evo Morales, anunciou que acusará o ex-presidente por ;crimes contra a humanidade;. ;Vou interpor contra o asilo de Evo Morales diante das autoridades mexicanas (art. 71.III), por massacre por crimes contra a humanidade;, escreveu Tóásó em sua conta no Twitter. Este cidadão húngaro e o boliviano-croata Mario Francisco Tadic são os únicos sobreviventes de um grupo de mercenários descoberto em 2009 e acusado de atentar contra o ex-presidente Evo Morales.

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