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Esquerda perde eleitores no interior do Uruguai e deixa direita perto do poder

Agência Estado
postado em 24/11/2019 09:13
Após 15 anos no poder, a esquerda uruguaia sabia que vencer mais uma eleição seria uma tarefa difícil. Se o crescimento econômico lento e a criminalidade em alta são os fatores mais visíveis da fuga de votos dos governistas da Frente Ampla, o distanciamento entre o presidente Tabaré Vázquez e o interior do país é outra razão que explica a provável derrota de seu candidato, Daniel Martínez, na votação deste domingo, 24. Um microcosmo que explica esse afastamento está no Departamento de Maldonado, um dos maiores centros produtores do Uruguai. Na eleição presidencial de 2014, a Frente Ampla, de Vázquez, venceu o Partido Nacional, de Luis Lacalle Pou (39% a 35%). Quatro anos depois, no primeiro turno, em outubro, o mesmo candidato Lacalle Pou derrotou o governista Martínez (38% a 30%) - a diferença se moveu 12 pontos porcentuais na direção da centro-direita. O divórcio com o interior do país foi em câmera lenta. Em fevereiro de 2018, Vázquez trocou insultos com produtores rurais que protestavam com o preço dos combustíveis diante da sede do Ministério da Pecuária. "Nos vemos nas urnas", gritou um pecuarista. O presidente olhou para trás e respondeu: "Sim, nos vemos nas urnas, porque vocês são um movimento político". "A Frente Ampla perdeu eleitores nas classes média e alta, dos quais já vinha se afastando desde 2004. Mas, acima de tudo, perdeu votos na classe baixa do interior. São eleitores novos, sem lealdade partidária, que se sentiram enganados e decidiram mudar o voto", diz Eduardo Bottinelli, diretor da consultoria Factum. Pesquisas indicam vitória de Lacalle Pou Os cinco principais institutos de pesquisa do Uruguai indicam uma vitória de Lacalle Pou, com cerca de 51% dos votos. Martínez, da Frente Ampla, teria aproximadamente 43%. Entre os problemas enfrentados pelo governo está o déficit fiscal, que alcança quase 5% do PIB, um aumento de 54% nos assaltos de rua e de 46% nos homicídios, além do resultados ruim do sistema de ensino (apenas 50% dos inscritos concluem o ensino secundário). O movimento Um Só Uruguai é um dos grupos mais articulados na sociedade civil. A organização se diz independente, ainda que tenha entre seus membros alguns opositores bem conhecidos no interior do país. As críticas do grupo ao governo vão desde a conservação de estradas até os preços da luz e do combustível - US$ 1 por litro de óleo diesel. Sebastián Martirena, de 40 anos, é membro do Um Só Uruguai. Ele vem de uma família de trabalhadores rurais. Seu avô tinha terras, mas ele nunca conseguiu ser proprietário. Martirena cresceu durante os governos da Frente Ampla e hoje aluga alguns hectares onde cria vacas. "Comprar hoje em dia é impossível", diz. Na crise de 2002, Martirena tinha apenas 18 anos, mas já participava com a família de protestos contra o governo da época, uma coalizão entre Partido Colorado e Partido Nacional. Hoje, protesta contra a Frente Ampla. "Faz mais de dois anos que o Estado abandonou o setor produtivo e o interior. Isso afeta tanto os trabalhadores rurais quanto os pequenos comerciantes. Ninguém nos atende, falta competitividade ao setor e precisamos de soluções", reclama. Escassez de caixas eletrônicos Outra queixa comum no interior do país é a reforma bancária promovida recentemente. Agora, todos os salários são pagos por transferência bancária, facilitando o controle da movimentação financeira por parte do Estado. O problema é que a medida vem asfixiando os pequenos negócios do interior. Como há escassez de caixas eletrônicos, os correntistas sacam o salário na capital e gastam em grandes redes de supermercados. Outra grandes dificuldade enfrentada pelo governo é o roubo de gado, que teve alta de 29% no primeiro semestre de 2019, com relação ao mesmo período do ano anterior. Emilio Arenas, de 72 anos, é alto e bem conhecido em todo o Departamento de Colonia por duas coisas: sua coleção de 20 mil lápis que o fizeram ganhar quatro prêmios Guinness e a reserva de mais de 70 animais nativos que teve. Eram vacas, bezerros, faisões, patos e pôneis que desapareceram por roubo. "A polícia não fez nada. Estamos muito cansados desse governo", afirma. No Departamento de Maldonado também não faltam exemplos do descuido do governo com o interior do país. Caminhando pelos balneários de Solís, Las Flores e Piriápolis, os mais procurados pelos montevideanos no verão, é difícil encontrar uma bandeira da Frente Ampla, enquanto faixas do Partido Nacional são comuns. A única casa com as cores do partido governista tem um cartaz de Darío Pérez, deputado considerado "rebelde" por ter criticado a Frente Ampla e bloqueado votações da maioria no Parlamento na mais recente legislatura. Frente Ampla conquistou presidência pela primeira vez após crise de 2002 A centro-esquerda uruguaia obteve sua primeira vitória em 1989, na segunda eleição realizada após o fim da ditadura militar. Na ocasião, venceu em Montevidéu, mas perdeu nos outros 18 departamentos uruguaios. O mesmo ocorreu em 1994. Já em 1999, conseguiu vencer em quatro departamentos. Em 2005, depois da crise econômica de 2002, que deixou mais de 30% dos uruguaios na pobreza, a Frente Ampla conquistou pela primeira vez a presidência e obteve a vitória em oito departamentos. Em 2010, a Frente Ampla voltou a vencer uma eleição nacional, conquistando 11 departamentos. Em 2014, cresceu ainda mais e foi mais votada em 14. No entanto, desde o primeiro turno, em outubro, o cenário é outro: o governo manteve apenas nove dos 19 departamentos. Em outubro, a Frente Ampla encerrou a campanha do primeiro turno em Montevidéu, enquanto o Partido Nacional escolheu a cidade de Las Piedras, no Departamento de Canelones, interior do país. Na semana passada, Martínez tentou mudar de estratégia e se apresentou ao lado de vários dirigentes políticos em Florida, no interior, enquanto Lacalle Pou voltou a optar por Las Piedras. No entanto, mesmo sabendo que as zonas rurais eram um de seus flancos mais vulneráveis, a Frente Ampla ignorou o campo e foi às eleições com uma chapa liderada por Martínez, ex-prefeito de Montevidéu, e Graciela Villar, que também integrou o governo departamental da capital. "O que o governo, a Frente Ampla e seu candidato fizeram vai contra os interesses do próprio partido. As cruzes com a mensagem Um Só Uruguai e outros setores em dificuldade não ajudaram. O partido não soube responder ao fenômeno ocorrido entre 2009 e 2014, quando houve uma mudança no eleitorado da Frente Ampla graças ao crescimento da classe mais baixa no interior, o qual o governo não capitalizou", departamentos. "Além disso, a chapa escolhida foi um equívoco, apresentando um perfil demasiadamente montevideano." Apesar da insatisfação de boa parte da população, dos erros estratégicos do governo e do cenário adverso apontado pelas pesquisas de intenção de voto, a Frente Ampla ainda não jogou a toalha. Analistas e consultores políticos, no entanto, consideram uma vitória de Martínez improvável. "Talvez (os governistas) consigam reduzir a margem da derrota, mas não parece razoável esperar uma guinada tão abrupta a ponto de mudar o vencedor", afirma Bottinelli. Partidos conservadores se unem contra a Frente Ampla no Uruguai A Frente Ampla, uma coalizão de esquerda que permaneceu 15 anos no governo, conseguiu obter 39% dos votos no primeiro turno das eleições, em 27 de outubro. É muito, se comparado com outros sistemas eleitorais, mas no Uruguai é pouco, pois a soma dos votos do Partido Nacional (28,6%), Partido Colorado (12,3%), Cabildo Aberto (11,0%), Partido da Gente (1,0%) e Partido Independente (0,9%) dá 53,8%, e todas essas forças políticas conseguiram chegar a um acordo e se uniram contra o partido governista no segundo turno, que será realizado neste domingo, 24. Luis Lacalle Pou, candidato de 46 anos do conservador Partido Nacional, conseguiu formar o que ele gosta de chamar de uma "coalizão multicolor". O Partido Colorado é o inimigo histórico do Nacional, ao qual também chamam de "partido branco". No entanto, desde a fundação da Frente Ampla no Uruguai, os dois alcançaram acordos para se unir contra o inimigo comum. O Cabildo Aberto, no entanto, está fazendo sua estreia nestas eleições. É considerado um partido militar, já que é liderado por Guido Manini Ríos, ex-comandante-chefe do Exército investigado pela Justiça por proteger um ex-ditador que admitiu ter jogado o corpo de um preso desaparecido no rio. Partido jovem já expulsou dois dirigentes Apesar de ser um partido jovem, já expulsou dois dirigentes: um por vestir uma camiseta com a palavra suástica escrita em alemão e outro por instigar pelas redes sociais a formação de "esquadrões da morte" como os que havia para assassinar militantes políticos de esquerda durante a ditadura militar. Antes da criação do Cabildo Aberto, era o Partido da Gente que buscava os votos dos eleitores de direita prometendo adotar uma política de "linha dura". O Partido Independente, por sua vez, se define como de centro-esquerda e tem entre seus membros ex-militantes da Frente Ampla. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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