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O peronismo de volta à Casa Rosada

O presidente eleito Alberto Fernández e a vice, Cristina Kirchner, tomam posse na próxima terça-feira com os desafios de reaquecer a economia e recuperar o legado peronista. Cientistas políticos alertam para o risco de tensões ideológicas

postado em 08/12/2019 04:15
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Manhã nublada de 4 de junho de 1946. Em seu discurso de posse, o então presidente da Argentina, Juan Domingo Perón, firmava uma aliança com a sociedade. ;O compromisso que acabo de contrair prestando o juramento constitucional se adentra em minha alma no mesmo espírito que minha decisão irrevogável de abraçar a causa do povo;, declarou. Depois de 73 anos e meio, o peronismo reafirma a alternância no poder e retorna à Casa Rosada; a última oportunidade foi com Cristina Fernández de Kirchner (2007-2015). Dessa vez, CFK, ou ;a Senhora;, como é conhecida, será a vice do presidente Alberto Fernández, que tomará posse nesta terça-feira como o 57; presidente da Argentina.

Além de reunificarem o peronismo, Fernández e Kirchner precisarão resgatar a economia do país e olhar com atenção para os menos favorecidos. ;Alberto Fernández é presidente graças a Cristina. Nos primeiros dois anos, ela controlará a vice-presidência, o Congresso e a poderosa província de Buenos Aires. CFK também sabe que desestabilizar Fernández produziria um governo frágil e instável. Ambos estão condenados a serem parceiros no poder;, afirmou ao Correio Andrés Malamud, pesquisador argentino do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

De acordo com Miguel De Luca, cientista político da Universidade de Buenos Aires, o peronismo nasceu fortemente intervencionista e estatista na década de 1940. Meio século depois, privatizou empresas do Estado, desregulamentou a economia e introduziu reformas pró-mercado. ;Com Néstor e Cristina Kirchner, regressou a uma posição mais intervencionista em matéria econômica. As políticas que Alberto Fernández levará adiante ainda são uma incógnita;, disse De Luca. Ele explicou que o desafio mais relevante para o novo presidente será a tensão entre a demanda ideológica de seus apoiadores e as urgências financeiras de seu governo. ;Em outras palavras, Alberto Fernández deverá equilibrar respostas que apelem à identidade ideológica com medidas de pragmatismo. A Argentina carece de reservas em dólares para cumprir com os vencimentos da dívida de 2020, portanto, deve renegociá-la ou não pagá-la.;

Legitimidade

Para Fernando Domínguez Sardou, cientista político da Pontifícia Universidade Católica da Argentina, o regresso do peronismo ao poder implica enfrentamento de um duplo problema: a reconstrução da legitimidade e do apoio popular e a resolução da política interna. ;No peronismo, se costuma dizer que o presidente é o ;chefe natural do partido;, mas isso não quer dizer que não tenha de resolver enfrentamentos entre facções;, comentou, ao lembrar que a chapa Frente de Todos foi construída a partir da reunificação de praticamente todas as facções do peronismo. ;Alberto Fernández terá de resolver se efetivamente é o líder do partido ou se isso recai sobre Cristina;, disse Sardou. O julgamento por corrupção pode custar à ;Senhora; a perda de credibilidade. No último dia 2, CFK transformou em palanque o testemunho no tribunal federal de Buenos Aires.

Segundo Sardou, o peronismo de Juan Domingo Perón e de Evita representa, para o atual, um legado histórico, centrado na resposta a demandas das classes baixa e média em torno do conceito de ;justiça social;. ;O peronismo soube construir uma capacidade adaptativa que transcende o ideológico. Nesse sentido, é mais um apelo a soluções de problemas conjunturais do que uma doutrina ideológica de fundo;, acrescentou. Nas últimas décadas, abandonou o viés de partido de base sindical tradicional para se tornar uma legenda mais flexível e informal, adaptando-se a diferentes conjunturas econômicas, políticas, sociais e ideológicas.

A guinada da direita à esquerda se deve ao fato de que a população responsabilizou o atual presidente, Maurício Macri, pelo mau desempenho econômico e pelas promessas não cumpridas de campanha, feitas em 2015. Malamud aposta que Fernández deverá enfrentar o mesmo problema: a solução da crise econômica. ;Ele precisa reestruturar a dívida externa no primeiro semestre do mandato, enquanto impulsiona a economia estagnada e trava a inflação;, afirmou.

;No peronismo, se costuma dizer que o presidente é o ;chefe natural do partido;, mas isso não quer dizer que não tenha de resolver enfrentamentos entre facções (;) Fernández terá de resolver se efetivamente é o líder;

Fernando Domínguez Sardou, cientista político da Pontifícia Universidade Católica da Argentina




Pontos de vista

Por Andrés Malamud
Adaptação aos tempos


;O peronismo já venceu 10 eleições presidenciais desde 1946: quatro com Juan Domingo Perón, duas com Carlos Menem e quatro pelo casal Néstor e Cristina Kirchner. Menem e os Kirchner culminaram os seus mandatos constiucionais sem problemas. É isso o que corresponde a esperar em relação a Alberto Fernández. Três elementos caracterizam o peronismo: a sensibilidade social, a vocação pelo poder e o pragmatismo ideológico. Isso lhe permite adaptar-se aos tempos. O que ocorrerá vai depender mais dos tempos do que do peronismo.;

Pesquisador argentino do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa



Por Miguel De Luca
Continuidade e mudança


;Atualmente, o peronismo mostra aspectos de continuidade e de mudança em relação ao peronismo de Juan Perón e de Evita. Os atributos de continuidade são o forte apoio que mostra nos setores populares, sua vinculação com as organizações sindicais, sua ampla heterogeneidade interna, seu caráter movimentista e sua tendência ao exercício vertical do poder. Em contraste, o peronismo tem variado suas políticas públicas.;

Cientista político da Universidad de Buenos Aires (UBA)


Por Raul Aragón
Retorno ao pragmatismo


;O regresso do peronismo, deste peronismo, que não é o kirchnerismo, implica o retorno ao pragmatismo peronista clássico. Atenderá, em primeiro lugar, a emergência alimentar e a previdência social. Haverá um forte apoio às pequenas e médias empresas para que elas produzam postos de trabalho e à reindustrialização do país. Alberto Fernández não veio para repartir planos ao estilo Kirchner, mas para evitar que seja necessário dividí-los.;

Diretor do Programa de Estudos de Opinião Pública na Universidad Nacional de la Matanza (em San Justo, Argentina)




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