Correio Braziliense
postado em 04/01/2020 04:05
Menos de 24 horas depois de assassinarem o general iraniano Qasem Soleimani — comandante da Força Quds (a unidade de elite da Guarda Revolucionária) —, os Estados Unidos realizaram novo ataque na madrugada de hoje (hora local), no norte de Bagdá. Dessa vez, o alvo foi um comboio que estaria levando um comandante da coalizão de milícias iraquianas pró-Irã Hashd Al-Shaabi, também conhecida como Forças de Mobilização Popular. O bombardeio deixou seis mortos e três feridos em estado grave. A organização informou que os carros atingidos transportavam médicos pertencentes às suas fileiras. O Correio tentou contato com dois porta-vozes da Hashd Al-Shaabi, mas os celulares de ambos estavam desligados. Em meio a uma escalada de tensões no Oriente Médio como não se via há anos, o presidente norte-americano, Donald Trump, decidiu enviar mais 3 mil soldados à região e afirmou que os Estados Unidos “acabaram” com Soleimani para impedir ataques a diplomatas americanos.
“Soleimani estava planejando ataques iminentes e sinistros contra diplomatas e militares norte-americanos, mas nós o pegamos no flagra e acabamos com ele”, declarou à imprensa, em sua residência de inverno situada em Mar-a-Lago, na Flórida. Soleimani; Abu Mahdi Al-Muhandis, vice-líder da Hashd Al-Shaabi; e outras oito pessoas foram mortas por foguetes disparados de drones, quando deixavam o Aeroporto Internacional de Bagdá. O aiatolá Ali Khamenei, guia supremo do Irã, nomeou o substituto de Soleimani: o brigadeiro-general Esmail Qaani, vice-comandante da Força Quds. “As ordens da Força Quds permanecem exatamente as mesmas que sob a direção do mártir Soleimani”, ressaltou.
Ao chamar Soleimani de “o terrorista número 1 no mundo” e de “doente”, o magnata republicano descartou planos de mudar o regime no Irã e tornou a defender o bombardeio preventivo. “Nós agimos ontem à noite (quinta-feira) para interromper uma guerra. Não agimos para começar uma. (…) Não buscamos uma mudança de regime”, disse. Para Trump, o líder militar “deveria ter sido assassinado há muitos anos”. “Ele matou, ou feriu gravemente, milhares de americanos durante um longo período e tramava matar muito mais. (…) Era direta e indiretamente responsável pela morte de milhões de pessoas”, tuitou o presidente, mais cedo.
Trump disse ter “profundo respeito” pelo povo iraniano, mas avisou que “a agressão do regime iraniano na região, incluindo o uso de guerrilheiros aliados para desestabilizar os vizinhos, deve acabar imediatamente”. “Os Estados Unidos têm, de longe, o melhor Exército de qualquer lugar do mundo. Nós temos a melhor inteligência no mundo. Se americanos forem ameaçados em qualquer lugar, temos todos os alvos totalmente identificados, e estou pronto e preparado para tomar a ação necessária. E isso, em particular, se refere ao Irã”, declarou. O secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, disse que os EUA estão “comprometidos com a desescalada”.
Visita
Khamenei visitou familiares de Soleimani, em Teerã, e prometeu uma “vingança severa” pela morte do comandante. “O martírio foi sua recompensa por anos de esforços implacáveis. Com sua partida e com o poder de Deus, seu trabalho e seu caminho não cessarão, e uma vingança severa aguarda esses criminosos que mancharam suas mãos sujas com o seu sangue e o sangue de outros mártires do incidente da noite passada”, declarou. Por sua vez, o brigadeiro-general iraniano Ramazan Sharif, porta-voz da Guarda Revolucionária, avisou que os EUA receberão uma “resposta esmagadora”. Ele assegurou que “os preparativos para a destruição de Israel foram finalizados”. O Conselho Nacional de Segurança do Irã se reuniu, em caráter de emergência, para decidir sobre a reação.
Professor de relações internacionais pela Universidade de Nova York e especialista em Oriente Médio, o iraquiano Alon Ben-Meir afirmou ao Correio que o assassinato de Soleimani é mais do que simbólico. “Ele era um dos pensadores mais estratégicos dos tempos modernos e com menos poder apenas do que Khamenei”, explicou. O estudioso acredita que Teerã atacará múltiplos interesses dos Estados Unidos na região, em um momento de sua própria escolha. “Provavelmente, alvos em Israel e na Arábia Saudita”, disse. Segundo Ben-Meir, várias milícias pró-Irã no Iraque, na Síria e no Iêmen poderiam cometer atentados terroristas para vingar Soleimani.
Robert Uebel, professor de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), descarta totalmente o início de uma Terceira Guerra Mundial e entende o cenário geopolítico envolvendo o Irã como repercussão dos conflitos entre EUA e Rússia. “É uma Guerra Fria adormecida, que, na última década, reacendeu conflitos indiretos. O ataque a Soleimani foi condenado inclusive pela ONU e representa um fator de aumento de instabillidade regional”, comentou. Ele aponta Israel e Arábia Saudita como alvos mais prováveis de uma retaliação iraniana. “Seria um tensionamento desnecessário para Riad, que tem se aberto ao sistema internacional. Israel é o único ponto vulnerável a um ataque direto de Teerã e enfrenta um momento político muito complicado. Até que ponto um novo conflito serviria para o premiê Benjamin Netanyahu, que disputará a reeleição?”, questiona.
Como consequência imediata do assassinato de Soleimani, Uebel vê o fechamento da mesa de negociações sobre um acordo para a desnuclearização de Teerã. “Além disso, o grupo xiita libanês Hezbollah, os palestinos do Hamas e grupos paramilitares aliados do Irã podem atacar Israel”, prevê.
PERSONAGEM
DA NOTÍCIA
Estrategista e ideólogo
Um “mito vivo”. Assim os iranianos viam o general Qasem Soleimani, comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária, responsável pelas operações da República Islâmica no exterior. Dotado de grande carisma, ele exerceu forte influência nas negociações políticas a partir de 2018 para a formação de um governo no Iraque.
Aos 62 anos, Soleimani se transformara recentemente em uma estrela no Irã. Para seus seguidores e para os críticos, ele era o homem-chave da influência no Oriente Médio. Além de combater os terroristas do Estado Islâmico (EI), reforçou o peso diplomático de Teerã, sobretudo no Iraque e na Síria.
Soleimani mostrou o seu talento de ideólogo militar no vizinho Iraque. Toda vez que havia uma situação política ou militar relevante no país, viajava a Bagdá para atuar nos bastidores. O avanço do EI, o referendo de independência no Curdistão ou atualmente a formação de um governo: em todas as ocasiões ele se reuniu com as diferentes partes e definiu a linha a seguir.
Depois de permanecer afastado dos holofotes por décadas, Soleimani começou a aparecer com destaque na imprensa a partir do início da guerra na Síria, em 2011, onde o Irã, um pesado xiita na região, ajuda o regime do presidente Bashar Al-Assad. Ele aparecia em fotos no campo de batalha, em documentários e chegou a ser representado em um filme de animação e em um vídeo musical.
Este importante comandante da Guarda Revolucionária, o exército ideológico da República Islâmica do Irã, também disse que estava no Líbano, com o Hezbollah xiita, durante a maior parte do conflito israelense-libanês de 2006, em uma entrevista exclusiva exibida pela TV pública iraniana em outubro. Um funcionário do governo iraquiano o descreveu como um homem tranquilo e que falava pouco. “Fica sentado do outro lado da sala, sozinho, muito calmo. Não fala, não comenta (...) só escuta”, disse à revista New Yorker.
“Soleimani estava planejando ataques iminentes e sinistros contra diplomatas e militares americanos, mas nós o pegamos no flagra e acabamos com ele”
Donald Trump,
presidente dos Estados Unidos
O que pensam os especialistas?
Ely Karmon, pesquisador do Instituto Internacional para Contraterrorismo (ICR), em Herzlyia (Israel)
“O assassinato de Qasem Soleimani foi, simbolicamente, um golpe muito importante executado pelos americanos. A tensão entre os Estados Unidos e o Irã pode escalar ainda mais. Tudo dependerá das próximas ações iranianas e de ataques pessoais ao presidente Donald Trump. Creio que o Hezbollah ajudará o Irã a atacar Israel, a partir do território da Síria, e atuar na arena do terrorismo internacional, inclusive na América Latina. A Jihad Islâmica também poderia enviar mísseis a partir da Faixa de Gaza.”
Robert Uebel, professor de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM)
“Iraque, Arábia Saudita, Turquia e quase todos os países muçulmanos do Oriente Médio condenaram ou se posicionaram com cautela em relação ao assassinato de Qasem Soleimani. A resposta do Irã pode vir até por meio de aliados e de outros atores. Poderia ser, por exemplo, um bombardeio a uma base militar norte-americana no Iraque. Hezbollah, Hamas e grupos paramilitares podem atacar Israel por conta da comoção provocada pela operação militar que matou o general iraniano.”
Trita Parsi, fundador do Conselho Nacional Iraniano-Americano
“O maior risco para os EUA pode não ser a resposta do Irã. É possível que outros elementos, que o Irã pode não controlar, comecem a atacar interesses norte-americanos no Oriente Médio. Mesmo que Washington e Teerã busquem a desescalada, talvez não consigam garantir que outros atores não lancem combustível ao fogo. Não estaríamos nessa situação perigosa se não fosse a retirada imprudente de Trump do acordo nuclear.
A pressão máxima dos EUA provocou tensões máximas, sem estratégia de saída.”
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