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Revolta no Irã por erro que matou 176

Protestos se espalham depois de investigação interna das Forças Armadas concluir que Boeing 737-800 foi derrubado ao ser confundido com míssil. Chanceler culpa "aventurismo" dos EUA, e Trump garante estar do lado do povo iraniano

Correio Braziliense
postado em 12/01/2020 04:05
Memorial improvisado com fotos dos tripulantes do voo PS 752 da Ukraine International Airlines (UIA), flores e velas, no aeroporto de Boryspil: cidade próxima à capital ucraniana, Kiev, era o destino do avião saído de Teerã

Diante das câmeras, o comandante da seção aeroespacial da Guarda Revolucionária Iraniana, brigadeiro-general Amirali Hajizade, assumiu “total responsabilidade” pela derrubada do Boeing 737-800 que fazia o voo PS 752 da Ukraine International Airlines (UIA). Todos os 167 passageiros e 9 tripulantes morreram na tragédia, na manhã da última quarta-feira, minutos depois de 22 mísseis do Irã atingirem duas bases usadas pelos EUA no Iraque. “Quando tive a certeza do que tinha ocorrido, preferi morrer a ter visto tal incidente. Qualquer que seja a decisão tomada pelas autoridades, obedecerei à sua implementação”, afirmou Hajizade. “Foi um míssil de curto alcance que explodiu próximo ao avião. É por isso que o avião continuou com seu voo por um momento e explodiu quando atingiu o chão.” O anúncio foi recebido com revolta pela população do Irã, além de familiares e amigos das vítimas.

Hajizade explicou que o 737-800 se aproximava de um “centro militar sensível” da Guarda Revolucionária. Um militar teria atuado sozinho, ao confundir o avião com um míssil de cruzeiro. “Ele tinha 10 segundos para decidir. Poderia ter decidido atacar ou não, e, sob tais circunstâncias, tomou a decisão errada”, admitiu o comandante, segundo o qual uma interferência nos sistemas de comunicação impediu o soldado operador do míssil de confirmar o disparo.  O aiatolá Ali Khamenei, guia supremo do Irã, ofereceu condolências aos familiares das vítimas e determinou investigações sobre “possíveis deficiências” que levaram à tragédia.

Por sua vez, o presidente iraniano, Hassan Rouhani, anunciou que uma investigação interna das Forças Armadas concluiu que, lamentavelmente, os mísseis disparados por erro humano causaram a queda horrível do avião. “A República Islâmica do Irã lamenta profundamente esse erro desastroso”, disse, ao prometer que os responsáveis pelo “erro imperdoável” serão punidos e processados. O chanceler, Mohammad Javad Zarif, declarou que “o erro humano, em um tempo de crise causado pelo aventurismo dos EUA, levou ao desastre”.

Lideranças cobraram transparência “total”. O premiê do Canadá, Justin Trudeau, conversou por telefone com Rouhani e disse que a confissão era “um passo importante”. “É necessária uma transparência total sobre as razões que provocaram uma tragédia tão horrível. O que o Irã reconheceu é muito sério, abater um avião comercial é horrível, o Irã deve assumir total responsabilidade”, declarou. A chanceler alemã, Angela Merkel, reconheceu um “passo importante” e enfatizou a necessidade de “estabelecer exaustivamente” as circunstâncias do incidente. “Esperamos que o Irã se sinta culpado ante a Justiça”, sublinhou o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.


Manifestações

Na noite de ontem, gritos ecoaram por Teerã e outras cidades. “Todos esses anos de crimes”, “Khamenei assassino”, “morte ao líder supremo” e “morte ao mentiroso”, bradavam estudantes da Universidade Politécnica de Teerã, que pediram a renúncia do aiatolá e foram dispersos pela polícia. Em tuíte escrito em farsi e em inglês, o presidente americano, Donald Trump, enviou mensagem de apoio ao “bravo e sofrido povo iraniano”. “Estou do seu lado desde o início da minha Presidência, e meu governo continuará com vocês. Estamos acompanhando de perto seus protestos, e somos inspirados por sua coragem”, afirmou. Ele exigiu que Teerã permita a ação de grupos de direitos humanos para monitorar as manifestações. O embaixador do Reino Unido no Irã , Rob Macaire, chegou a ser detido pelas forças iranianas por fotografar os protestos e foi solto pouco depois.

Em entrevista ao Correio, Shahin Gobadi — porta-voz da Organização dos Mujahedine do Povo Iraniano (MEK), um dos principais grupos de oposição ao regime teocrático islâmico no exílio — lembrou que os mulás (clérigos do islã) se abstiveram de ordenar o cancelamento de todos os voos comerciais em espaço aéreo iraniano, apesar de terem alertado Bagdá sobre o ataque de mísseis iranianos. “Os comandantes de Khamenei, Rouhani e da Guarda Revolucionária são os principais culpados e devem ser punidos. Mesmo agora, o regime tenta enganosamente ajudar os principais culpados por este desastre a fugirem da responsabilidade, dando desculpas ridículas”, disse.


Gobadi acredita que o povo iraniano não cessará os protestos até a mudança do regime. “Em novembro passado, houve protestos em 191 cidades do Irã, e as autoridades mataram mais de 1.500 manifestantes. A maré mudou contra o regime, que nunca foi tão fraco quanto hoje”, assegurou.

Morador de Vancouver (Canadá), Kei Esmaeilpour era amigo do engenheiro Ardalan Ebnoddin Hamidi, que morreu no voo PS 752 ao lado da esposa, Niloofar Razzaghi, e do filho, Kamyar, 15 anos. Ele disse ao Correio que a “terrível tragédia começou 40 anos atrás”, com a Revolução Islâmica. “Quando esse grupo veio ao poder, expulsou cientistas e professores. Hoje, 7 milhões de iranianos estão no exílio. Mais de 30 mil vieram para o Canadá. Algumas vezes, se arriscam à prisão para visitar seus familiares, como o meu amigo Ardalan”, desabafou. Ele aposta que o regime “matará algum soldado em uma Corte fechada, e ponto final”.



Vidas ceifadas


Ela não recebeu a mensagem
Hamed Esmaeilion (D), dentista em Richmond Hill (Canadá), perdeu a mulher, Parisa, e a filha, Reera, de 9 anos. Ambas tinham ido a um casamento em Teerã. Ele enviou mensagem à esposa, que nunca será lida: “Vocês estavam no aeroporto quando o Irã atacou as bases americanas. Estou feliz por terem saído daí.” Hamed homenageou a família: “Agora vocês estão no brilho do sol. E eu, sob sua sombra”.


Um tuíte premonitório
Mojtaba Abbasnezhad, estudante de PhD pela Universidade de Toronto, teve um pressentimento na véspera de embarcar no Boeing 737-800 com destino a Kiev. Às 21h35 de 7 de janeiro, menos de nove horas antes da tragédia, Mojtaba escreveu no Twitter uma mensagem reveladora. “Eu previ que a guerra começaria logo antes do meu voo. Me perdoem pelas minhas boas e más ações”, publicou.


O voluntário visitava a mãe
O engenheiro Ardalan Hamidi (D); a mulher, Niloofar (E) e o filho do casal, Kamyar (C), 15 anos, morreram na tragédia. Ao Correio, Kei Esmaeilpour, 49 anos, amigo da família, contou que Ardalan tinha visitado a mãe, aproveitando as férias de duas semanas. Os três moravam em Vancouver, no Canadá. “Ardalan gastava parte do tempo como voluntário na Associação Cívica dos Iranianos no Canadá. Ele era gentil, acreditava em educar o povo para que fosse capaz de praticar a democracia.”
 
 
 
 
 
 
 
 

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