Correio Braziliense
postado em 12/01/2020 10:31
Dois meses de protesto com forte tom contrário aos polÃticos colocaram o governo do presidente Sebastián Piñera contra as cordas e embaralharam o cenário eleitoral chileno. Potenciais candidatos evitam se apresentar como porta-vozes das reivindicações para não parecerem oportunistas, mas analistas colocam alguns nomes em ascensão em meio à crise.
Dois deles, considerados fortes postulantes a substituir Piñera, vêm de lados opostos do espectro polÃtico. O jornal O Estado de São Paulo falou com ambos sobre os protestos e a perspectiva de chegarem à presidência.
Beatriz Sánchez, de 49 anos, jornalista sem experiência em administração pública, foi a grande surpresa na última eleição, em 2017, ao obter 20,2% dos votos e quase chegar ao segundo turno. Antiga eleitora dos socialistas, decidiu formar um grupo mais à esquerda e tornou-se o nome mais consolidado entre os progressistas. No poder, seria mais radical no aumento do papel do Estado.
Manuel José Ossandón é um técnico agrÃcola de 57 anos que disputou a última eleição primária do Renovação Nacional, de direita, partido do presidente. Perdeu a indicação para Piñera e voltou a se concentrar em seu mandato de senador. Dono de um discurso considerado populista por seus inimigos, "Cote" Ossandón baixou o próprio salário quando o Parlamento passou a discutir a questão. É o nome conservador com maior potencial eleitoral.
Os atos que abalaram o governo começaram em outubro, contra um aumento de R$ 0,16 no preço do metrô de Santiago. Logo, os manifestantes passaram a exigir mudanças em aposentadoria, educação, saúde e na concessão dos serviços públicos em geral. Acuado, Piñera colocou o Exército na rua, disse estar em guerra e decretou estado de emergência por 8 dias.
A repressão encorpou o movimento e obrigou o governo a uma série de recuos. A popularidade de Piñera bateu em 12%, o que o levou a sua maior concessão, que tende a facilitar as demais: abrir as portas a uma nova Constituição, medida elogiada tanto por Beatriz quanto por Ossandón. Com este passo, após décadas de pressão contra a Carta de 1980 - escrita sob governo de Augusto Pinochet -, Piñera retoma fôlego para terminar seu mandato, que vai até 2021. O paÃs não tem reeleição.
Desde a redemocratização, em 1990, centro-direita e centro-esquerda se alternam no poder e mantêm uma linha econômica estável. Como os protestos carregam uma forte revolta contra o Estado e o sistema polÃtico, especialistas veem como possÃveis beneficiários da crise um populista, alcunha com a qual Ossandón diz não se importar, ou de um nome desassociado dos partidos tradicionais, caso de Beatriz.
Entrevista: 'O paÃs tinha uma sociedade que explodia para dentro
Entrevista com Beatriz Sánchez, representante do bloco de esquerda Frente Ampla:
Os protestos no Chile são inexplicáveis para quem só vê indicadores econômicos. O que ocorreu?
Somos o 15.º paÃs mais desigual do mundo e um dos mais desiguais da América Latina, juntamente com o Brasil. Temos uma acumulação obscena de riqueza em 1% da população e alguns dos Ãndices de depressão mais altos do mundo, segundo a OMS. Temos também altas taxas de suicÃdio entre crianças e adolescentes. Muitos estudos relacionam altos Ãndices de endividamento com doenças mentais. Certos números mostram o Chile como aluno mais comportado do bairro. Quem pesquisar mais, verá que essa revolta era anunciada. Houve manifestações explosivas em 2006 e 2011, mas esta é realmente outra coisa. TÃnhamos uma sociedade que explodia para dentro. Isso mudou.
Segundo o Banco Central, no ano passado, 73% do que uma famÃlia recebia eram dedicados a dÃvidas. Isso explica por que paÃses mais desiguais que o Chile, como Brasil, não passam por uma revolta como esta?
Temos uma classe polÃtica pequena, que pertence a uma elite muito concentrada. Tanto na centro-esquerda quanto na centro-direita. A nossa elite vem de quatro ou cinco colégios e duas universidades de Santiago. São basicamente homens. TÃnhamos uma sensação, apesar de o Chile ter todos esses problemas, de que havia certo respeito à s instituições. Mas há uns cinco anos foram aparecendo altos Ãndices de corrupção, casos em que empresários praticamente entregavam leis que deveriam ser aprovadas aos parlamentares. Muitas instituições começaram a rachar, incluindo os carabineros (polÃcia militar), que considerávamos incorruptÃveis. Percebemos que são corruptos como a polÃcia de outras partes do mundo.
Um populista pode chegar ao poder no Chile?
Ninguém sabe o que vai acontecer depois desse movimento. A direita tenta despolitizar a crise, falar que todos os polÃticos são o problema. Isso talvez não pertença a um partido polÃtico, mas são demandas de um movimento polÃtico. Se as pessoas não acreditarem que há uma saÃda polÃtica, corremos o risco de chegar a um lugar imprevisÃvel. Mas, se promovermos a ideia de que é preciso mais participação polÃtica, a consequência será diferente. Não há soluções fáceis. A solução passa por uma nova Constituição.
Apesar das concessões feitas, Sebastián Piñera recebe novas demandas, e a falta de um lÃder entre os manifestantes contribui para isso. Há outra alternativa?
SaÃdas polÃticas para mobilizações anteriores tiveram péssimo resultado. Em 2006 e 2011, houve acordos populares em que as pessoas ficaram muito decepcionadas. O pior que poderia acontecer é aparecer uma liderança popular que diga "represento a população".
Manifestantes dizem que a revolta poderia ter sido detonada também num governo de esquerda. O protesto é contra o quê?
As duas grandes mobilizações dos últimos tempos ocorreram contra o mesmo governo, de Sebastián Piñera. Isso não é casualidade. Não gostei dos governos da Concertação e da Nova Maioria (que levaram o Partido Socialista ao poder). Votei neles e não fizeram nada para evitar o que está ocorrendo. Mas o que Piñera vinha fazendo era retirar os poucos direitos que haviam sido conquistados no governo anterior. Essa é uma explosão contra o modelo neoliberal, mas as pessoas não falam assim, porque falar de modelo neoliberal é algo difuso. Estão reclamando porque se cansaram dos abusos e não conseguem chegar ao fim do mês.
Faltou vontade ou competência aos governos de centro-esquerda para mudar este cenário?
As duas coisas. A Constituição é uma amarra e está fechada sobre si mesma. É preciso mudá-la. Fazer mudanças profundas é muito difÃcil. Mas também é verdade que a Concertação, nos seus anos de governo, fez um pacto transicional com a ditadura. A Concertação tirou muita gente da pobreza. O que vemos nas mobilizações não são as pessoas mais vulneráveis, mas a classe média, que está sufocada.
Se a sra. enfrentasse uma onda de protestos como essa na presidência, como reagiria?
Precisamos deixar que as pessoas tomem decisões no Chile, estimular a participação. O governo tentou apagar com querosene um incêndio. Um ministro da Economia, quando as pessoas reclamaram que o bilhete de metrô subiria em determinado horário, recomendou que elas acordassem mais cedo para pagar menos. Há alguns meses, o subsecretário de Saúde disse que as pessoas gostam de levantar às 5 horas da manhã e fazer fila nos postos de saúde porque buscam vida social. Outro, questionado sobre a razão de tudo estar subindo no Chile, pão, leite e serviços básicos, menos as flores, aconselhou os cidadãos a comprar mais flores. Isso é apagar o fogo com querosene. É não ter um pé na rua e ver o que acontece no Chile.
Entrevista: Sempre separei populismo de demagogia
Entrevista com Manuel Ossandón, senador do partido de direita Renovação Nacional:
Boa parte dos protestos é contra a classe polÃtica e uma das exigência era a redução do salário dos polÃticos. O que os polÃticos fizeram de errado?
É uma revolta contra o sistema, contra o Estado. As pessoas estão frustradas e todos são alvo, não apenas a classe polÃtica. Existe uma elite que continua abusando e tirando proveito dos privilégios, enquanto as pessoas seguem com aposentadorias e salários miseráveis. Antes que o Parlamento chegasse a uma decisão sobre os salários, decidi baixar o meu sozinho.
É surpreendente que não haja bandeiras de partidos nos protestos. Algum grupo polÃtico tentou se apropriar das demandas?
Quem tentar fazer isso está errado. PolÃticos e seus partidos são parte do problema. É uma crise cultural, não é apenas uma manifestação polÃtica. É por isso que essa manifestação não tem um lÃder, nem uma solicitação clara. O que estamos exigindo é mudar a maneira de fazer as coisas: melhorar a transparência, a alocação de recursos e a rastreabilidade.
Este cenário anti-Estado e antissistema pode favorecer a chegada ao poder de um populista?
Seria necessário definir o que é populismo. Sempre separei o populismo da demagogia. Se alguém trabalha na rua, com sucesso comprovado, e o chamam de populista, não vejo problema. Além disso, aqueles que dirigiram o Chile e falam apenas à elite representaram precisamente o contrário. No meu paÃs, o populismo está associado a não entender algo, a questões que são temidas ou não compreendidas.
Seus rivais o consideram um populista, pelo menos se compararmos com a maior parte da classe polÃtica chilena. Como se definiria?
Ser populista e desleal, como me chamam, sempre significou para mim estar com aqueles que têm menos. Prefiro estar nesse caminho e não na polÃtica da estratosfera. Gostaria de destacar que fui prefeito durante 20 anos. Ser prefeito permite que você esteja em uma batalha na primeira linha da pobreza e da realidade cotidiana. Essa experiência não tem preço, porque hoje eu posso falar com propriedade das carências das pessoas.
Alguns analistas interpretam essa revolta como um movimento contra o neoliberalismo. Mas, nas ruas, as pessoas dizem que ela poderia ter explodido com os socialistas Michelle Bachelet ou Ricardo Lagos. É correto?
Isso é o fim de uma etapa e vai muito além de uma crÃtica ao modelo neoliberal. Acredito no crescimento econômico, mas com uma distribuição muito melhor. Crescimento sem paz social não funciona. As pessoas devem ter sua parte nos ganhos de um paÃs. É claro que o modelo deve ser corrigido.
Por que a direita chilena não consegue se desconectar da sombra de Augusto Pinochet? O sr. vê coisas boas no governo dele?
Ninguém está mais pensando em Pinochet. As pessoas se cansaram da maneira de se relacionar com o Estado, com instituições, com empresas. Estamos diante de uma mudança muito profunda e transversal e vejo essa mudança com otimismo. Aqueles que ainda estão presos lá atrás continuarão arrastando as barras do passado. Hoje, devemos trabalhar contra a desigualdade, os abusos, buscar o desenvolvimento inclusivo e a igualdade. Hoje, o paÃs exige que falemos com todos, para fazer pontes.
Se o sr. se tornar presidente e algo semelhante acontecer em seu governo, como negociaria?
Primeiro, acredito que o presidente Sebastián Piñera não seja o único responsável pelo que aconteceu. Vi autoridades do governo desconectadas da realidade e da rua. Devemos entender que a raiz do problema existe e não estamos vivendo apenas um problema de ordem pública. Apostar no desgaste do movimento social e desacreditá-lo foi uma estratégia terrÃvel. A chave para sair de um problema como esse é a transversalidade e o senso comum. As pessoas não querem destruir o Chile, as pessoas querem viver em paz.
O sr. teria colocado o Exército na rua para controlar os protestos?
Para controlar os protestos, inicialmente, não. Mas sugeri várias vezes concentrar os militares na infraestrutura essencial do Chile. A destruição ocorrida em nosso paÃs é inegável, mas devemos trabalhar juntos para avançar e melhorar o que tÃnhamos.
O que acontecerá com uma Constituinte? Uma nova Carta garantiria maior controle sobre as concessões à iniciativa privada?
Uma nova Constituição, nascida na democracia, será importante. Passaremos para um modelo que coloque as pessoas no centro, que devolva a dignidade, que seja verdadeiramente participativo, que quebre abusos e desigualdades, onde o Estado as proteja e as defenda. Mas também devemos crescer economicamente. Acredito no livre mercado, mas ele não pode ser autorregulamentado. Chegou a hora de distribuir a riqueza para todos os chilenos e isso não significa tirar de um para dar aos outros. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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