Correio Braziliense
postado em 13/01/2020 04:34
O aviso do aiatolá Ali Khamenei ocorreu poucas horas depois de seu país impor o mais duro golpe aos Estados Unidos nos últimos anos e dias após a invasão da Embaixada norte-americana, em Bagdá, pela milícia xiita iraquiana pró-Teerã Hashd Al-Shaabi. “Essa região não tolerará a presença dos EUA; as nações na região não aceitarão isso, assim como os governos apoiados por seus povos”, declarou o guia supremo do Irã. Mais que um recado, as palavras do aiatolá soaram como um apelo aos chamados proxies de Teerã, uma cadeia de grupos fundamentalistas, milícias xiitas e países que se beneficiam do regime teocrático islâmico. Na tentativa de conter essa influência, o governo Donald Trump executou, com um ataque de drones, o general Qasem Soleimani — comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária Iraniana e principal arquiteto da política externa de Teerã no Oriente Médio. Para especialistas, o tiro saiu pela culatra. Os tentáculos do Irã na região estão intactos.
Além de transformar Soleimani em mártir, os Estados Unidos reforçaram o antiamericanismo na região e os anseios da não presença das tropas do país em terras árabes. Estudioso em Oriente Médio pela Universidade da Califórnia (UCLA), James Gelvin explicou ao Correio que, enquanto a Arábia Saudita exagerou a influência transnacional do Irã, Teerã tirou vantagem do caos provocado pela ocupação do Iraque; pelos levantes árabes, em 2010 e 2011; e pela ascensão do Estado Islâmico. “Nesses cenários, os iranianos passaram a apoiar governos simpatizantes e movimentos em todo o Oriente Médio. Isso inclui os governos da Síria e do Iraque; os rebeldes huthis, no Iêmen; e a organização xiita Hezbollah, no Líbano.”
Para Gelvin, a vingança do Irã pela morte de Soleimani pode não ter se restringido ao lançamento de 22 mísseis balísticos contra as bases militares de Ain Al-Asad e de Erbil, no Iraque, usadas pelos Estados Unidos. “Milícias apoiadas pelo Irã e pelo Hezbollah no Iraque, no Iêmen e na Síria poderão ser destacadas para atacar interesses dos EUA e de aliados, de um modo que permita a Teerã negar envolvimento”, explicou.
Diretor do Projeto de Inteligência do Instituto Brookings (em Washington) e ex-funcionário da Agência Central de Inteligência (CIA), Bruce Riedel considera ser “muito prematuro” afirmar que a crise americano-iraniana passou. “De forma tola e imprudente, o governo Trump tropeçou em um desastre”, advertiu. Ele também alertou que Teerã possui muitos proxies e aliados no Iraque, na Síria, no Líbano e no Iêmen. No dia dos bombardeios às bases, a Guarda Revolucionária Iraniana ameaçou alvejar Haifa, em Israel, e Dubai, nos Emirados Árabes Unidos — ações militares hipotéticas que poderiam lançar a mão de parceiros regionais.
O Irã se beneficia dos erros do inimigo, na opinião do iraquiano Alon Ben-Meir, professor de relações internacionais da Universidade de Nova York e especialista em Oriente Médio. “Não há dúvida de que a retirada de Trump do acordo nuclear assinado pelo Irã com as grandes potências, em 2015, fortaleceu Teerã, em vez de enfraquecer a influência regional do regime teocrático islâmico. Como resultado, o Irã ampliou sua ascendência sobre Iraque, Síria e Líbano. Também se tornou mais determinado a ajudar os huthis iemenitas a tirarem vantagem de uma negociação, no momento oportuno”, avaliou. Ben-Meir disse ao Correio que o assassinato de Soleimani unificou o Irã. No entanto, a admissão de culpa no abatimento do Boeing 737-800 com 176 passageiros, ocorrido na manhã de quarta-feira, insuflou parte da população contra o regime.
Por sua vez, Maristela Basso, professora de direito internacional e comparado da Universidade de São Paulo (USP), reconhece o momento delicado nas relações entre Washington e Teerã. Ela acha que o mundo vive o período de maior tensão das últimas duas décadas. “A saída dos EUA do acordo sobre armas nucleares com o Irã, no ano passado, foi um passo equivocado de Trump. O grito de guerra foi dado pelos americanos. O problema, agora, é saber até onde o seu eco pode alcançar.”
Iraque
O Parlamento iraquiano aprovou, na semana passada, resolução exigindo a expulsão de todas as forças dos EUA. Ben-Meir analisa que, no caso da retirada militar, o Irã declarará vitória. “Teerã sempre buscou expulsar as forças americanas do Oriente Médio, e o assassinato de Soleimani em território iraquiano dará ao Irã o que ele procurava”, observou. Gelvin entende que o êxito do Iraque em forçar a saída dos EUA dependerá de o regime precisar mais do apoio do próprio povo iraquiano, de Teerã ou de Washington.”
Pontos de vista
Por Maristela Basso
Em busca da nova ordem
“O Irã goza de influência no Iraque, na Síria e no Iêmen. O regime apoia grupos de milícias nesses três países, assim como o (movimento fundamentalista islâmico) Hezbollah, no Líbano. Teerã conta com um extenso e bem articulado sistema de inteligência em quase todo o Oriente Médio. Também presta suporte aos xiitas contra os sunitas, assim como aos antissemitas que lutam contra o Estado de Israel. A estratégia do Irã não é promover a guerra, mas semear a desordem. Isto é, uma nova ordem pós-Revolução Iraniana de 1979 que convém aos persas.”
Professora de direito internacional e comparado da Universidade de São Paulo (USP)
Por James Gelvin
A criação de um mártir
“O general Qasem Soleimani, comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária Iraniana, foi meticuloso na construção de capacidades assimétricas do Irã no financiamento, armamento e treinamento de aliados não governamentais em todo o Oriente Médio. Sua morte é uma perda definitiva para o regime iraniano. Por outro lado, o assassinato dele criou um mártir para a causa anti-imperialista e antiamericana. Como resultado, sua eliminação pode ser um tiro pela culatra para os Estados Unidos, em uma região onde os americanos são cada vez mais impopulares.”
Especialista em Oriente Médio pela Universidade da Califórnia (UCLA)
Por Alon Ben-Meir
Posição fortalecida
“O Irã não apenas não perdeu influência na região, como fortaleceu sua posição. Agora, será muito mais difícil obter um novo acordo nuclear, especificamente porque Teerã não mais confia nos americanos e especialmente em Donald Trump, que se afastou do pacto. Eu suspeito que não haverá acordo, nem mesmo a perspectiva de um, antes da eleição americana, em novembro. Qualquer iniciativa nova para alcançar um novo pacto terá de ser reavaliada depois do pleito, assim como à margem dos novos eventos que provavelmente surgirão até lá.”
Professor de relações internacionais da Universidade de Nova York
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