Correio Braziliense
postado em 15/01/2020 04:43
Sob intensa cobrança das ruas e da comunidade internacional, o Irã anunciou ontem as primeiras detenções de responsáveis pela derrubada do Boeing 737-800 da Ukraine International Airlines (UIA) com 176 pessoas a bordo, em Teerã, há exatamente uma semana. “Uma vasta investigação foi realizada, e pessoas foram presas”, declarou o porta-voz do Judiciário iraniano, Gholamhossein Esmaili, em entrevista televisionada para todo o país, sem fornecer mais detalhes. Por sua vez, o presidente Hassan Rohani explicou que um tribunal especial, formado por juiz de alto escalão e por dezenas de especialistas, terá a incumbência de deliberar sobre as possíveis punições. “Não se trata de um caso comum; o mundo inteiro estará assistindo”, reforçou Rohani. “Para o nosso povo, é muito importante neste acidente que qualquer pessoa que tenha cometido uma falta ou negligência em qualquer nível seja processada”, acrescentou.
No último sábado, o general de brigada Amirali Hajizadeh, comandante do setor aeroespacial da Guarda Revolucionária Iraniana, assumiu “total responsabilidade” pela queda do avião. Ele afirmou que o militar operador de mísseis decidiu pelo disparo por conta própria e precisou agir em 10 segundos. O soldado não pôde confirmar o alvo devido a interferências no sistema de comunicação. O abatimento do avião ocorreu na manhã de 8 de janeiro, minutos depois de 22 mísseis iranianos atingirem duas bases aéreas usadas por soldados norte-americanos no Iraque, sem deixar feridos. Todos os 176 ocupantes do voo PS 752 morreram na tragédia.
A admissão de culpa do regime provocou uma onda de protestos em Teerã e em outras cidades do país, com pedidos de renúncia de Rohani e do aiatolá Ali Khamenei, guia supremo do Irã. Pelo quarto dia consecutivo, autoridades detiveram ontem estudantes iranianos durante manifestações, abastecidas pelo fato de o regime ter negado envolvimento na queda do avião por 48 horas. A agência France-Presse divulgou que cerca de 200 estudantes, a maioria deles com o rosto coberto, ficaram frente a frente com o Basij, um movimento paramilitar de voluntários islâmicos, na Universidade de Teerã.
Flagrante
Um vídeo cuja autenticidade foi confirmada pelo jornal The New York Times mostra que dois mísseis, disparados em um intervalo de 23 segundos, derrubaram o avião. O primeiro míssil teria incapacitado o transponder — o aparelho que emite sinais e permite à torre de controle registrar sua localização. Em chamas, o 737-800 aparece nas imagens voando em círculos, tentando retornar ao Aeroporto Internacional Imã Khomeini, em Teerã. Minutos depois, ele explodiu e caiu próximo ao vilarejo de Khalaj Abad. O Times revelou que o vídeo foi filmado sobre o telhado de de um prédio nas imediações da vila de Bidkaneh, a quatro milhas (6,4km) de um sítio militar iraniano.
O cientista político ucraniano Andrey Buzarov (leia o Depoimento) escapou da morte ao mudar a data do bilhete aéreo e desistir de embarcar no voo PS 752. Em entrevista ao Correio, ele disse acreditar que as punições pelo abatimento do Boeing 737-800 serão muito severas. “As consequências da tragédia são incertas. A posição oficial do governo iraniano de que a queda do avião foi acidental não é tão convincente”, comentou. Buzarov estava em Teerã em 8 de janeiro, dia da tragédia, e lembra que o Aeroporto Internacional Imã Khomeini não cancelou os pousos e as decolagens, apesar de o voo PS 752 ter partido com 45 minutos de atraso. “Se tivesse sido um acidente, por que dois mísseis foram disparados contra o 737-700? O primeiro atingiu o cockpit, matando instantaneamente os pilotos. Há muitas questões em aberto; não sei se foi intencional, mas tenho sérias dúvidas de que se tratou de acidente.”
Onze ucranianos morreram dentro do avião derrubado. “Conheci uma delas, a comissária de bordo Elena Malahova. Era muito comunicativa”, disse. Apesar da comoção, Buzarov duvida que os protestos no Irã levem à mudança de regime. Segundo ele, a cada três ou cinco meses, a sociedade civil iraniana, marcada pelos conservadores e pelos liberais, se envolve em protestos. “Os conservadores são muito influentes no Irã, especialmente em Teerã. A oposição ao sistema político se aproveita de eventos para expressar insatisfação. Mudar o regime de fora para dentro é impossível, pois a diplomacia persa se mostra muito eficiente.”
“O Poder Judiciário deve formar um tribunal especial com juiz de alto escalão e dezenas de especialistas. Não se trata de um caso comum; o mundo inteiro estará assistindo.”
Hassan Rohani, presidente do Irã
Depoimento
“Era para eu estar morto”
“Eu mudei a data do bilhete do meu voo quando estava em Kiev, em 4 de janeiro. Inicialmente, tinha comprado a passagem para o dia 8. A funcionária da companha aérea sugeriu que eu comprasse o bilhete para o dia seguinte, pois estaria US$ 279 mais barato. Fui à capital do Irã para a conferência internacional Tehran Dialogue Forum. Os organizadores do evento insistiram que eu retornasse em 8 de janeiro, sob a justificativa de que não cobriam os custos de um dia a mais. Decidi ficar. A funcionária da Ukraine International Airlines (UIA) acabou me convencendo a ficar um dia a mais em Teerã, apenas para fazer turismo.
Desembarquei em Teerã no mesmo dia do funeral do general Qasem Soleimani. No dia da tragédia, acordei às 6h30 e fiz o check-in para o dia seguinte. Tomar conhecimento de que o avião em que eu estaria tinha caído foi algo terrível. Soube por meio de um amigo morador de Teerã, mas eu não dimensionei a escala do desastre. Mais tarde, compreendi que todos em meu voo inicial estavam mortos. Percebi a gravidade da situação quando vi fotos não pulicadas do local da queda. Vi vários corpos e o que tinha ocorrido com eles. Eram imagens horríveis. Fui sortudo ao escutar a funcionária da companhia aérea, que me convenceu a trocar o bilhete. Fiz questão de visitá-la e demonstrar minha gratidão (foto).”
Andrey Buzarov, cientista político ucraniano que trocou a passagem do voo derrubado em Teerã
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