Correio Braziliense
postado em 15/01/2020 04:43
De pé, perante a juíza Anne-Sophie Martinet, o ex-padre francês Bernard Preynat iniciou a confissão que chocou o tribunal. Julgado por pedofilia, ele trouxe suas memórias à tona e admitiu ter abusado durante duas décadas, entre 1971 e 1991, de “quatro a cinco crianças” por semana. “Isso significa quase uma criança por dia”, reagiu a magistrada, que preside as audiências.
Aos 74 anos, Preynat, que foi reduzido ao estado secular durante o julgamento canônico a que foi submetido no verão passado, agora pode ser condenado a uma sentença de até 10 anos de prisão. “Na época, a meu ver, não cometia agressões sexuais, mas carícias, carinhos. Estava errado. Foram as acusações das vítimas que me fizeram compreender”, disse o ex-padre, admitindo, porém, que sabia que fazia algo errado: “Eu sabia que esses gestos eram proibidos, que eram carícias que eu nunca deveria ter feito. Eram feitas às escondidas. E sim, é verdade, me proporcionavam prazer sexual.”
As declarações chocaram quem estava no tribunal. Suspeita-se de que o ex-padre tenha abusado sexualmente de cerca de 70 crianças, com idades entre 7 e 15 anos. Na época dos crimes, ele era capelão dos grupos católicos de escoteiros de Sainte-Foy-Les-Lyon, cidade perto de Lyon, no centro-leste da França. Era admirado pelos pais da diocese, que confiaram seus filhos aos seus cuidados na paróquia, ou durante acampamentos no exterior.
Por vários anos, os abusos foram ocultados pela Igreja Católica francesa. Somente em 2015, alguns ex-escoteiros quebraram o silêncio e denunciaram Preynat na Justiça por toques, beijos na boca e carícias forçadas recíprocas de natureza sexual. Em março do ano passado, o cardeal Philippe Barbarin foi condenado a seis meses, em liberdade condicional, por não informar os crimes à Justiça e por manter Preynat na diocese até 2015, apesar de ele ter confessado seus atos aos superiores em 1991. Barbarin, cuja renúncia foi rejeitada pelo papa, recorreu dessa sentença.
“Inferno”
Uma das vítimas de Preynat e cofundador da associação Palavra Libertada, François Devaux prestou um comovente testemunho. “O que estou vivendo aqui é o mais difícil desde o início do caso”, desabafou. Devaux fez um relato do “inferno” que fez seus pais viverem e “a violência” que dominava numa adolescência que ele classificou como “muito, muito complicada”.
Ele contou ter chegado a tentar o suicídio. “Antes, aparentemente, eu era um menino cheio de luz. Depois, vivi uma vida muito sombria (...) e flertei com coisas muito perigosas”, destacou.
Por confessar os crimes, analistas afirmam que Preynat será indubitavelmente condenado. O advogado Frédéric Doyez, defensor do ex-padre, disse que ele tentará “estabelecer os fatos durante o julgamento”, mesmo que tenham ocorrido várias décadas atrás. “Esses são fatos que deveriam ter sido julgados há 30 anos. Saberemos por que não bateu na porta de um tribunal em vez de bater na porta de um bispado. Saberemos por que, na época, era considerado normal que não houvesse nenhuma resposta penal”, declarou Doyez, que aponta — sem dizer explicitamente — a responsabilidade de alguns dos pais.
O julgamento teve início na segunda-feira, mas foi suspenso logo depois. Houve tempo, de qualquer forma, para que Preynat expressasse seu arrependimento. O ex-padre se declarou culpado pela dor causada às vítimas e expressou o desejo de que “esse julgamento fosse realizado o mais rápido possível, pois o processo começou cinco anos atrás”.
A investigação revelou que Bernard Preynat havia cometido seus primeiros ataques a partir dos 17 anos, quando era monitor em colônias de férias, em 1962. Mas esses crimes não serão julgados. O réu relatou que passou por terapia e parou de cometer abusos sexuais desde 1991.
“Na época, a meu ver não cometia agressões sexuais, mas carícias, carinhos. Estava errado. Foram as acusações das vítimas que me fizeram compreender”
Bernard Preynat, ex-padre
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