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Mais poder ao czar

Presidente Vladimir Putin anuncia reforma constitucional inédita e nomeia primeiro-ministro desconhecido, depois de renúncia em massa do gabinete. Especialistas veem manobra para perpetuação no governo e meio de impedir surgimento de lideranças políticas

Correio Braziliense
postado em 16/01/2020 04:06
Putin se reúne com o novo premiê, Mikhail Michustin, antes responsável pela administração tributária do país: escolha surpreendente para analistas


Nos corredores do Kremlin, um ditado retrata bem o momento político em Moscou: “Há caos e choque no alto escalão de poder”. Em uma manobra surpreendente até mesmo para veteranos analistas políticos, o governo inteiro da Rússia apresentou a renúncia, horas depois de o presidente Vladimir Putin apresentar um plano de reforma constitucional para fortalecer os papéis da Duma (Parlamento) e do primeiro-ministro. O premiê Dmitri Medvedev justificou a decisão de desmantelar o gabinete. “Nós, enquanto governo da Federação da Rússia, devemos dar ao presidente do nosso país os meios para tomar todas as medidas que se impõem. É por esse motivo (...) que o governo, em seu conjunto, entrega sua demissão”, declarou.

Putin agradeceu a Medvedev e sua equipe pelos resultados obtidos e anunciou o chefe de governo — Mikhail Michustin, responsável pela administração tributária russa e desconhecido da opinião pública. Medvedev deverá assumir o posto de vice-chefe do Conselho de Segurança. “Como se sabe, o presidente é o chefe do Conselho”, declarou, em referência a si mesmo.

A quatro anos de encerrar o mandato, sem direito à reeleição, Putin pretende conceder à Duma a prerrogativa de eleger o primeiro-ministro. O próximo mandatário, com isso, terá menos poder, o que abrirá espaço para que o atual presidente ocupe o posto de premiê ou exerça outro cargo no qual goze de mais influência nos assuntos do Estado. Em pronunciamento anual ante o Conselho da Federação e a Duma Estatal (as duas Câmaras do Parlamento), Putin afirmou que concorda com a objeção a um presidente se manter no posto por dois mandatos consecutivos, apesar de não ver importância fundamental no tema.

O impedimento para um terceiro mandato e o fortalecimento do papel do primeiro-ministro na formação do governo seriam submetidos a um referendo, que foi ridicularizado por Alexey Navalny, principal nome da oposição. “É necessária a participação de 50% dos eleitores, mas ninguém quer participar disso. Haverá algum tipo de porcaria fraudulenta”, previu, em mensagem publicada no Twitter.

Putin também propôs ampliar os poderes do Conselho de Estado, uma instituição consultiva composta por  autoridades nacionais e regionais, e dos governadores das províncias. Chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (em Moscou), Lilia Shevtsova explicou ao Correio que Putin está enfraquecendo os postos de presidente e de primeiro-ministro. “Com isso, ele elimina a ameaça de que esses ramos de poder representem uma concorrência. Putin escolherá para si mesmo um outro papel — chefe do Conselho de Segurança ou do Conselho de Estado. Será o cargo mais poderoso da Rússia”, afirmou. “Ele eliminará a possibilidade de um presidente poderoso e escolherá um sucessor fraco. Fará tudo o que puder para liquidar qualquer chance para a oposição.” A estudiosa entende Medvedev como uma marionete, um político transformado em assistente leal de Putin.

Remoção
Valeriy Akimenko, especialista russo do Conflict Studies Research Centre (Reino Unido), também disse à reportagem ter ficado surpreso com a renúncia em massa do governo. “Foi Medvedev quem fez o anúncio, mas com certeza não foi sua decisão. Putin resolve tudo; construiu um sistema ‘vertical’ de poder, onde ele é o poder personalizado e personificado. Por motivos incertos, ele removeu Medvedev agora. Poderia ser uma forma de tirá-lo do caminho, mas também de transformá-lo em um aliado confiável”, analisou.

Para Akimenko, Putin possui um histórico de duas décadas de aferrar-se ao poder. “As propostas da reforma constitucional são exatamente um exemplo — elas enfraquecem a presidência, de forma de um provável sucessor não será outro todo-poderoso Putin. Essas medidas também fortalecem a noção de Parlamento, apesar de sua reputação de apenas ser um carimbo para suas decisões”, afirmou.

O especialista reconhece um esforço do Kremlin de recrudescer a influência de outras agências do governo, como o Conselho de Estado e o Conselho de Segurança, “que será chefiado por Putin e terá Medvedev como uma espécie de vice”. “O agora ex-premiê terá a função de segundo na cadeia de comando, responsável pela defesa e pela segurança nacional no onipotente Conselho de Segurança dos notáveis ‘siloviks’ (chefes de segurança). Alguns analistas podem ver isso como uma manobra à margem de Medvedev, mas pode muito bem ser o oposto disso.”



Pontos de vista



Por Lilia Shevtsova


Demissões inesperadas

“Nós todos temos esperado ver um novo mecanismo de governança que permitirá a Vladimir Putin preservar os instrumentos de poder. Mas a demissão de todo o governo e a indicação de seu novo primeiro-ministro (Mikhail Michustin,chefe da administração tributária russa) eram inesperadas. Mesmo para o próprio governo.”

Chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (em Moscou)




Por Valeriy Akimenko


De olho na supremacia

“O presidente busca garantir que não haverá outro Putin. Por um lado, trata-se de uma medida destinada a distribuir poderes de modo menos centrado em um único indivíduo como agora. Por outro lado, um movimento projetado para garantir a própria supremacia continuada sobre a Rússia. Putin é forte demais para permitir ser arrastado do poder.”

Especialista russo do Conflict Studies Research Centre (Reino Unido)

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