Correio Braziliense
postado em 31/01/2020 04:15
Às 23h de hoje (20h de Brasília), depois de quatro anos de debates políticos acalorados, renúncia de chefe de governo e ameaças de um “divórcio litigioso”, o Reino Unido e a União Europeia (UE) encerrarão, consensualmente, um casamento de quase meio século. O gesto, respaldado pelo referendo de 23 de junho de 2016 com 52% dos votos a favor e 48% contra, tem consequências econômicas e políticas imprevisíveis e, segundo analistas, dificilmente será desfeito. O último passo antes da separação foi dado ontem pelos países da UE, que ratificaram por escrito o acordo do Brexit (como é chamado o processo).
“O acordo entrará em vigor no momento em que o Reino Unido sair da UE, em 31 de janeiro de 2020, às 23h GMT”, informou o Conselho Europeu, por meio de comunicado. Até 30 de dezembro, os britânicos serão obrigados a seguir um período de transição, respeitando as normas europeias, inclusive em relação ao comércio.
“Eu farei uma saída digna da União Europeia e celebrarei de uma forma que espero que seja respeitosa ante a escala do evento e faça justiça à façanha extraordinária. É um grande momento para o nosso país, um momento de esperança e de oportunidade, mas também para que fiquemos juntos, em um espírito de confiança”, declarou o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson. Às 19h de hoje, uma hora antes da saída do bloco, as redes sociais transmitirão discurso gravado do líder do Partido Conservador.
No pronunciamento, ele descreverá o Brexit “não como um fim, mas como um início”. “Este é o momento em que a aurora se desponta, e a cortina sobe em novo ato. É um momento de verdadeira renovação e mudança nacional”, dirá, segundo o The Independent. O jornal londrino divulgou que não haverá cerimônias, nem queima de fogos de artifício ou ressoar dos sinos do Big Ben. Johnson participará de uma recepção com seu gabinete, a portas fechadas, em 10 Downing Street, a residência do chefe de governo.
Ontem, o premiê recebeu a visita e o apoio do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo. De acordo com o chefe da diplomacia de Washington, o Brexit trará “enormes benefícios” para os dois países do acordo comercial pós-divórcio. “Estou otimista, porque havia coisas que o Reino Unido tinha que fazer como membro da UE; agora, podem fazê-lo de maneira diferente.”
A aposta de Johnson é considerada de alto risco. Para Andrew Blick, diretor do Centro para Política e Governo Britânicos e do Departamento de História e Política do King’s College London, parece implausível que o premiê tente reverter o Brexit, mesmo sob circunstâncias ruins. “Para o Reino Unido e a UE aceitarem tal mudança de curso de ação como algo viável, isso exigiria profundas mudanças políticas em Londres. Johnson teve a sorte de enfrentar um Partido Trabalhista combalido por divisões internas e impopularidade. Ele esperará que a oposição continue a infligir dificuldades a si mesma”, afirmou ao Correio.
“O Brexit não será revertido enquanto eu estiver vivo. Talvez em 25 ou 50 anos, se a União Europeia ainda estiver em atividade”, admitiu Anthony Glees, professor emérito da Universidade de Buckingham (Reino Unido), por e-mail. “É possível, apenas possível, que isso continue como antes, apesar de toda a batida de tambores e do choque de címbalos. Nós costumávamos estar na UE abrindo mão de tudo. Agora que ficaremos fora dela, talvez optemos por participar de tudo”, brincou.
Comércio
De acordo com Glees, até 30 de dezembro deste ano, o Reino Unido manterá as transações comerciais com a UE e conduzirá o relacionamento com o bloco com se fosse Estado-membro. “Os britânicos não poderão assinar novos acordos comerciais até que formalmente se torne um ‘terceiro país’ para a UE. Mas, eles já começaram a discutir sobre comércio com outras nações. Alguns arranjos comerciais que o Reino Unido possui via UE serão ‘revirados’ e continuarão como antes”, disse.
O especialista de Buckingham reforça a urgência de o Reino Unido preservar a relação na área de segurança com os 27 países da UE. “É um problema europeu e precisamos trabalhar em cooperação com o bloco. Um punhado de neonazistas e jihadistas se tornaram conhecidos pelo Reino Unido graças ao compartilhamento de dados de inteligência. Isso deve continuar”, defendeu Glees.
Do referendo à retirada do bloco
Voto a favor do Brexit
Em 23 de junho de 2016, em um referendo que terminou com 52% de votos a favor e 48% contra, os britânicos decidiram deixar a UE. O resultado levou o então primeiro-ministro conservador, David Cameron (foto), a renunciar. Na disputa para substituí-lo, o ex-prefeito de Londres Boris Johnson, partidário do Brexit, retirou-se no último momento, e Theresa May, ministra do Interior de Cameron durante seis meses, tornou-se primeira-ministra em 11 de julho.
A largada
Em 29 de março de 2017, o governo britânico ativou com uma carta a Bruxelas o artigo 50 do Tratado Europeu de Lisboa, que rege o mecanismo de retirada voluntária de um país-membro. Iniciou-se, assim, o prazo de dois anos que devia resultar na saída britânica do bloco, inicialmente prevista para 29 de março de 2019.
May perde a maioria no Parlamento
Theresa May (foto) antecipou as eleições para 8 de junho, em uma tentativa de fortalecer sua posição, mas perdeu a maioria absoluta e teve de negociar o apoio dos 10 deputados do Partido Unionista Norte-Irlandês (DUP) para poder governar.
Primeiro acordo de divórcio
Após um ano e meio de árduas negociações, Londres e Bruxelas alcançaram um acordo de divórcio em 13 de novembro de 2018. O acerto precisou superar uma ameaça de veto da Espanha, em razão das relações com Gibraltar. Foi finalmente assinado em 25 de novembro.
Três rejeições e dois adiamentos
Em 15 de janeiro de 2019, o acordo foi rejeitado com 432 votos contra e 202 a favor no Parlamento britânico. No dia seguinte, o governo de May sobreviveu por uma maioria estreita a uma moção de censura lançada pela oposição trabalhista. May obteve mais garantias da UE sobre a “salvaguarda irlandesa”, mas os deputados de Westminster voltaram a rejeitar o texto em 12 de março. O Conselho Europeu concordou em adiar o Brexit até 22 de maio, se o Reino Unido aprovasse o Tratado de Retirada, deixando até 12 de abril para apresentar uma proposta alternativa. Em 29 de março, o acordo foi rejeitado pela terceira vez, por 344 votos contra 286. Em 11 de abril, obteve um segundo adiamento da UE até 31 de outubro.
Eleição de Boris Johnson
Em 23 de julho, Boris Johnson (foto), partidário de um Brexit com ou sem acordo em 31 de outubro, foi eleito pelo Partido Conservador para suceder May. A primeira-ministra havia anunciado sua renúncia em 7 de junho.
Parlamento suspenso
Em 28 de agosto, o novo primeiro-ministro anunciou a suspensão do Parlamento a partir da segunda semana de setembro e até 14 de outubro, ou seja, duas semanas antes do Brexit. Em 3 de setembro, Boris Johnson perdeu a maioria absoluta após deserções e expulsões de deputados de seu partido. Também foi abandonado por vários membros de seu governo. O Parlamento aprovou uma lei que obrigava o primeiro-ministro a pedir à UE que adiasse o Brexit, caso não se chegasse a um acordo de retirada até 19 de outubro.
Suspensão “ilegal”
Em 24 de setembro, a Suprema Corte britânica julgou “ilegal” a suspensão do Parlamento, que voltou a se reunir no dia seguinte.
Segundo acordo
Em 17 de outubro, antes da abertura de uma cúpula europeia, UE e Reino Unido anunciaram um novo acordo de divórcio.
Decisão adiada e terceiro adiamento
Em 19 de outubro, o Parlamento britânico aprovou uma emenda que adiava qualquer adoção do acordo de divórcio até que a legislação necessária para implementá-lo fosse aprovada. Isso forçou Boris Johnson a solicitar, contra sua vontade, um adiamento adicional da União Europeia até 31 de janeiro de 2020. Em 22 de outubro, o Parlamento britânico aprovou o princípio do novo acordo, mas votou contra seu exame acelerado, como Johnson queria, que, em reação, retirou o projeto.
Eleições e fim do bloqueio
Em 28 de outubro, a UE aprovou o terceiro adiamento e, um dia depois, ao fim de um acalorado debate, os deputados britânicos aceitaram por maioria de dois terços o pedido de Johnson, previamente rejeitado, de convocar eleições legislativas antecipadas em 12 de dezembro. O líder conservador venceu as eleições com uma esmagadora maioria de 365 deputados em uma câmara de 650. Em 20 de dezembro, Johnson apresentou à nova Câmara dos Comuns o projeto de lei que deve traduzir o Tratado de Retirada em lei britânica. O texto recebeu uma aprovação inicial histórica de 358 votos contra 234. Em 9 de janeiro, os deputados adotaram definitivamente o texto em uma votação histórica por 330 votos a 231.
Promulgação real
Oito dias antes da grande partida, a rainha Elizabeth II deu o consentimento ao texto que regula os termos da ruptura.
Ratificação no Parlamento Europeu
Por 621 votos a favor, 49 contra e 13 abstenções, os eurodeputados validaram o acordo de divórcio após um debate marcado pela emoção, em Bruxelas. “Somente na agonia da separação olhamos para a profundidade do amor”, disse a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que citou o poeta britânico George Eliot. “Sempre te amaremos e nunca estaremos longe”, acrescentou.
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.