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Tempestade política

Aliança de conveniência com a extrema direita, nas eleições regionais do estado da Turíngia, detona crise no partido da chanceler alemã, Angela Merkel. Especialistas veem fortalecimento dos ultrarradicais e perda de credibilidade de legendas tradicionais

Correio Braziliense
postado em 08/02/2020 04:15
Manifestante (D) mostra cartaz em que se lê %u201CMelhor governar com fascistas do que não governar%u201D, em frente à sede do FDP, em Berlim




Um dos mais conhecidos provérbios alemães sobre a amizade afirma que “amigo é alguém que conhece você e ainda o ama”. A máxima certamente não vale para a aliança política sem precedentes em uma pequena região do centro-leste da Alemanha. Para eleger o deputado Thomas Kemmerich ao cargo de premiê da Turíngia, o Partido Democrático Liberal (FDP) se beneficiou dos votos em “coalizão” da União Democrática Cristã da Alemanha (CDU) — a legenda da chanceler Angela Merkel — e da Alternativa para a Alemanha (AfD), a principal facção política da extrema direita. Merkel considerou a manobra “imperdoável”, Kemmerich apresentou a renúncia, novas eleições foram convocadas, mas o estrago estava feito. Desde 2013, a extrema direita tem capturado eleitores da CDU, ao adotar uma retórica contrária aos imigrantes e à elite. Considerado uma traição aos próprios ideais, o episódio enfraqueceu a CDU, causando tensões internas no partido da chanceler.

“A aliança informal entre a CDU e a AfD na Turíngia representa um grave dano aos princípios democráticos e à cultura política alemã”, sentenciou ao Correio Ulrich von Alemann, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Heinrich-Heine (em Dusseldorf). Para ele, o grande erro de Merkel foi creditar a Annegret Kramp-Karrenberger, sucessora da chanceler na liderança da CDU, “competência demais” para lidar com os assuntos do partido. “Com o discurso de quinta-feira, em visita à África do Sul, Merkel retomou à posição de chanceler. Ela articulou fortes palavras, mas já era tarde demais”, afirmou. Apesar da crise interna na CDU, o especialista descarta alto risco de erosão da coalizão e da chancelaria. “O Partido Social-Democrata não está interesssdo em eleições, assim como a CDU. No entanto, esse incidente terá efeitos a longo prazo no futuro da formação de coalizões na Alemanha”, acrescentou.

Analista político e diretor da Rasmussen Global (consultoria em Berlim fundada pelo ex-secretário-geral da Otan, Anders Fogh Rasmussen), Olaf Böhnke explicou que a coalizão com a AfD na Turíngia minou a credibilidade da CDU e do FDP enquanto partidos democráticos e moderados. “Todos os eleitores de ambas as legendas que se opõem à AfD enfrentarão graves dificuldades para acreditar em quaisquer declarações de suas lideranças”, advertiu. Segundo ele, a votação na Turíngia aumentará o apoio público pela AfD, por ter ajudado a facção a se reivindicar como um partido de centro-direita. “O partido Alternativa para a Alemanha acredita que  exerceu seus deveres democráticos, ao apoiarem um candidato liberal (Kemmerich), ajudando a evitar um governo minoritário da esquerda”, avaliou.

Böhnke isenta um erro pessoal de Merkel na formação da coalizão, por ela não mais liderar a CDU. As lideranças da CDU e do FDP estão sob ataque, por motivos distintos. Presidente do FDP, Christian Lindner recebe críticas por não ter interferido nem se oposto à decisão de seu partido de se aliar à AfD, na Turíngia. Sua posição indubitável de liderança dentro do partido liberal foi arruinada, segundo Böhnke. Por sua vez, Annegret Kramp-Karrenberger reagiu imediatamente e criticou o próprio partido, mas não reforçou o apelo pela convocação de eleições imediatas no estado. “Sua liderança, que já estava contestada no seio da CDU, ficou ainda mais enfraquecida. Isso desempenhará papel importante, assim que o partido indicar o candidato à sucessão de Merkel”, aposta.

Impacto
As circunstâncias políticas na Turíngia devem impactar negativamente os partidos do establishment (ligados a Merkel). “O fato de os líderes de todas as legendas de centro-esquerda e de direita no âmbito federal terem criticado e feito objeção a esse ato democrático de um voto parlamentar parece reação real não democrática do establishment. Tal resultado foi o principal motivo pelo qual grupos parlamentares da CDU e do FDP na Turíngia explicitamente alertaram sua liderança nacional a não enviar candidatos próprios para um terceiro turno, pois a AfD indicou antecipadamente que reagiria como fez. Dessa maneira, a CDU e o FDP caíram em uma armadilha montada pela extrema direita”, disse Böhnke.

Parceiro da coalizão de Merkel, o Partido Social-Democrata (SPD), determinou à CDU e à sua presidente, Annegret Kramp-Karrenberger, que resolvam a crise o mais rápido possível, sob pena de abandonar a aliança. Böhnke não vislumbra esse cenário, por entender que o SPD não se beneficiaria da situação. “Angela Merkel fortaleceu sua reputação como uma voz clara e alta contra o populismo de direita na Alemanha. Ela permanecerá como uma importante participante nessa crise. Se  Annegret Kramp-Karrenbauer continuar tão fraca na disputa interna, Merkel pode interferir ainda mais na crise interna da CDU do que ela pretendia fazer. Mas a crise do partido é séria”, sentenciou o analista da Rasmussen Global.






Repercussão negativa na imprensa local

Os veículos de comunicação da Alemanha centraram críticas pela escolha da União Democrática Cristã (CDU), o partido da chanceler Angela Merkel, em selar uma aliança com a extrema direita. A revista Der Spiegel estampou na capa a foto de Thomas Kemmerich, o deputado do Partido Democrático Liberal (FDP), que se elegeu premiê da Turíngia (leste da Alemanha) e renunciou pouco depois, em meio à polêmica por ter se beneficiado da coalizão entre a CDU e o ultrarradical Alternativa para a Alemanha (AfD). Em tom irônico, a publicação trouxe a manchete “O democrata” (foto), seguida do texto: “Como o flerte com a AfD envenenou a República de Berlim”. O jornal Die Welt culopou diretamente a chefe de governo por não ter conseguido impor à CDU a questão das relações com a extrema direita. “O erro fatal de Merkel”, afirmou em sua manchete. Por sua vez, o jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung publicou que, “para a questão do posicionamento moral da CDU e sua relação com a AfD, nenhum resposta foi encontrada”.





Eu acho...



“A crise será resolvida, ao menos no âmbito federal. A confiança na União Democrática Cristã (CDU). A confiança na CDU — e em todos os partidos democráticos, à exceção da Alternativa para a Alemanha (AfD) — permanecerá arranhada por mais tempo. A própria chanceler, Angela Merkel, surfa na crista de sua chancelaria histórica e não será afetada por assuntos mesquinhos.”

Ulrich von Alemann, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Heinrich-Heine (em Dussseldorf)



“O que houve na Turíngia foi uma mudança de paradigma, algo sem precedentes na história da Alemanha desde a Segunda Guerra Mundial: um premiê estadual ser apontado com a ajuda de um partido de extrema direita. Mesmo depois da renúncia de Thomas Kemmerich e da convocação de eleições, o voto em Erfurt (capital da Turíngia) marca um ponto de virada e terá consequências de longo prazo para o  cenário político da Alemanha.”


Olaf Böhnke, analista político e diretor da Rasmussen Global, consultoria em Berlim fundada pelo ex-secretário-geral da Otan, Anders Fogh Rasmussen


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