Correio Braziliense
postado em 16/02/2020 04:05
RISCO, VÍRUS E INCERTEZA
Risco e incerteza: dois conceitos distintos tratados com elegância e rigor pelo economista americano Frank Knight, num livro de 1921. Para Knight, incerteza verdadeira ocorre quando há a possibilidade de resultados alternativos para os quais não é possível calcular a probabilidade de suas ocorrências. Por sua vez, tudo que for possível calcular a probabilidade de ocorrência pertence à categoria de risco. O mais comum é que as pessoas misturem essas duas situações difíceis de entender.
O sociólogo alemão Ulrich Beck propôs uma bem acabada descrição da vida contemporânea se desenrolando sob a égide do risco. Já o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, registrou a apreensão dos nossos tempos flutuando na incerteza.
Para Bauman, as pessoas vivem ansiosas e com medo de não terem na manhã seguinte aquilo que contavam como certo ao dormir. Isso é muito diferente de risco. Paradoxalmente, há muita liberdade em tal situação, mas também muita insatisfação, pois é uma liberdade precária com incompreensão de todos os lados. Tais situações são chocadeiras de crises.
E aqui estamos nós, em um início de ano em que os conceitos distintos de risco e incerteza estão se entrelaçando cada vez mais dada a grande complexidade dessa sociedade de vida programada, não por nós, mas pelos outros. E quem são os “outros”?
Com isso, as companhias de seguro, que fazem da ciência de medir risco e a arte de medir incerteza sua vocação, estão sob grande pressão. Como assegurar de verdade a restituição de danos oriundos de destruição física causada por mudança climática, terrorismo, epidemias, guerras e contínuas guinadas políticas?
Na vanguarda do atual contexto, há quem aposte que um computador quântico possa calcular melhor a probabilidade de ocorrências alternativas, reduzindo a incerteza da vida das pessoas e colocando a complexidade de volta dentro da caixa do risco. Há quem aposte que adotar esse caminho só aumentará ainda mais a força de estruturas de poder que minem a liberdade.
Para que lado vai a economia política internacional ainda está em aberto em importantes pontos, mas que passam pela eleição americana e a política de desacoplamento entre as economias da China e dos EUA que já é uma realidade.
Tanto Donald Trump quanto Bernie Sanders, ou qualquer outro democrata que se viabilize, só passarão na base da promessa de mudanças de conteúdo que reduzam a incerteza.
Muitas pessoas não estão aguentando a incerteza da vida, que é oriunda de um grau de liberdade inaudito, e talvez anseiem pelo retorno a certas certezas, mesmo que absurdamente arriscadas. A proximidade de tal mudança de rumo, e as fricções causadas para forçá-lo, estão fazendo o risco explodir.
Se, em agosto de 2019, um dos índices mais utilizados para medir risco geopolítico atingiu a pontuação mais alta desde abril de 2003, em janeiro de 2020, o índice chegou a 746 pontos, o maior já registrado desde o início da Primeira Guerra Mundial, em agosto de 1914. Compilada por Dario Caldara e Matteo Iacoviello, que trabalham para o FED, o banco central americano, a série histórica se baseia numa identificação de menções a situações que impactam risco geopolítico, encontradas em três dos principais jornais de americanos desde 1899.
É bastante provável que, nos EUA, os anos 2020 verão um rompimento agudo do liberalismo. Democrata ou republicano, já está em curso avançado o novo estatismo nos EUA, e a eleição atual só o reforçará. Seja de forma óbvia e clara, seja dissimulada e com subterfúgios, o país já não é mais muito liberal na forma, e vai deixar de ser liberal no conteúdo.
O principal colunista do jornal The New York Times nos últimos vários anos, o ganhador do Nobel de economia Paul Krugman, escreveu, quando ainda era só economista e analisava o então assombramento dos EUA com o Japão, que pessimistas nos EUA sentiam que o país estava vendendo sua primogenitura por um prato de lentilha. O Honda havia passado o Chevrolet como carro do ano. O drama bíblico retornou 30 anos depois, em proporções diluvianas, com a ascensão da China e sua tecnologia. E os EUA estão dispostos a cuspir no prato que comeram e a expulsar o irmão do jeito que for.
A mais palpável apropriação da histeria de incerteza é a decisão de certos países de usar o coronavírus para impedir fluxos de viagem e trocas comerciais, a despeito da orientação contrária da OMS. Esse tipo de atitude é um dos claros casos que misturam incerteza e risco. E fazem convergir o autoritarismo patente na China com o autoritarismo latente nos países que se contrapõem a ela. O cada um que cuide de si nunca teve tanta chance assim de dar errado.
Paulo Delgado, sociólogo
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.