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Dilema democrata

Partido opositor estaria disposto a se sacrificar para barrar a indicação do senador Bernie Sanders, caso ele não obtenha maioria absoluta. Decisão levaria a impasse na Convenção Nacional, em julho. Especialista cita visão à esquerda como obstáculo

Correio Braziliense
postado em 28/02/2020 04:16
Bernie Sanders cumprimenta simpatizantes durante comício em Myrtle Beach, na Carolina do Sul: estado realizará as primárias amanhã


Por temerem perdas no Congresso durante as eleições de 3 de novembro, lideranças do Partido Democrata estariam incomodadas com a ascensão de Bernie Sanders na corrida à Casa Branca. Ao serem consultados pelo jornal The New York Times, 93 autoridades, todas superdelegados da legenda, se disseram dispostas a sacrificar o próprio partido para interromper a indicação do senador durante a Convenção Nacional Democrata, entre 15 e 16 de julho, em Milwaukee, no estado de Wisconsin. A rejeição do nome de Sanders na escolha interna levaria à chamada convenção intermediada (veja quadro), um cenário de batalha política visto pela última vez 68 anos atrás e capaz de provocar desgaste nas fileiras, no momento em que se torna urgente um candidato de peso para confrontar o presidente Donald Trump.

A principal preocupação é a de que Sanders seja vencido pelo magnata republicano nos principais Estados-chave do país e force à derrota candidatos moderados ao Senado e à Câmara dos Deputados. Dois pontos da agenda do senador de 78 anos são considerados polêmicos por boa parte dos norte-americanos: a promessa de plano de saúde universal para todos os cidadãos e a gratuidade de faculdade pública durante quatro anos. O The New York Times entrevistou 93 dos 771 superdelegados democratas, além de estrategistas e assessores sobre os anseios das lideranças do partido. Somente nove dos superdelegados afirmaram que Sanders pode ser tornar o indicado apenas por ter chegado à convenção.

Em entrevista ao Correio, Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), afirmou que Sanders não é o candidato do establishment do Partido Democrata. “Tanto que há uma mobilização muito forte em favor do ex-vice-presidente Joe Biden e do ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg, que também experimenta grande rejeição por ser bilionário e ter sido republicano”, explicou. “Sanders, por sua vez, era independente e fez críticas reiteradas a posições democratas tradicionais, além de ter uma visão muito à esquerda dentro do partido. Isso seria prejudicial não somente na eleição presidencial de 3 de novembro, como nas eleições distritais. O grande temor dos democratas é a perda da maioria na Câmara dos Deputados e não obter uma representatividade sólida no Senado.”

Moderação

Denilde acredita que o ideal seria um candidato democrata mais moderado. Ela vê Biden como o nome mais próximo desse espectro, seguido por Pete Buttigieg, ex-prefeito de South Bend (Indiana). A especialista da ESPM admite a possibilidade de nenhum candidato conseguir número suficiente de delegados para ter maioria na primeira rodada de votações da Convenção Nacional Democrata, o que envolveria a participação de superdelegados na segunda rodada. “A negociação poderá ser um pouco mais difícil. A expectativa é de que os superdelegados se distribuam com base nas posições dos eleitores, por isso, a chance de Sanders seria relativamente alta. Mas é possível que haja duras negociações sobre o vice-presidente e o partido se enfraqueça para a disputa direta contra Trump”, acrescentou.

Professor de ciência política da Universidade Estadual de Iowa, Steffen Schmidt concorda com Denilde e disse que “o establishment do Partido Democrata não quer Sanders como candidato”. “A regra exige o voto da maioria dos delegados na Convenção Nacional Democrata. Eles não mudarão as regras para um socialista que pretende ser democrata. Os superdelegados não votam na primeira rodada. Se ninguém obtiver maioria, haverá uma segunda votação. Dessa vez, os delegados não precisarão votar em quem se comprometeram nas primárias. Os superdelegados que não foram eleitos, mas também são líderes do partido, também poderão participar. O partido poderá votar em qualquer nome para ser candidato. Qualquer um! Mesmo na ex-secretária de Estado Hillary Clinton ou no senador afro-americano Cory Booker”, explicou ao Correio.

Para Schmidt, se Bernie Sanders não tiver a maioria absoluta dos delegados, o partido trabalhará no sentido de encontrar um não socialista. Ontem, o senador de 78 anos participou de um comício na Carolina do Norte e tornou a destacar o viés esquerdista (leia Análise da notícia). “Estamos aqui para enviar uma poderosa mensagem à classe bilionária — Vocês não podem ter tudo. Nós derrotaremos Donald Trump e criaremos uma economia que funcione para todos.”


Impasse no final


Quais os prováveis cenários de entrave durante a Convenção Nacional Democrata

Convenção intermediada
» Ocorre quando um candidato fracassa em obter a maioria dos superdelegados após a primeira rodada de votações na convenção. Os delegados, então, continuam votando até que um candidato seja escolhido. Entre os votos, são comuns negociações nos bastidores, com promessas de empregos ou de vice-presidência.

Convenção contestada
» É quando um candidato obtém a liderança, mas isso não garante a manutenção da candidatura depois da primeira votação. Tanto a convenção intermediata quanto a contestada impedem a capacidade geral do candidato de mostrar que representa um partido unido em torno de seu nome.



Antecedente

» A última vez em que o impasse na Convenção Nacional Democrata ocorreu foi em 1952. O então senador Estes Kefauver (foto), um liberal do estado do Tennessee, ganhou em 12 das 15 primárias, derrotando o adversário Adlai Stevenson. Por ter liderado audiências no Congresso sobre o crime organizado, ganhou inimizades de políticos. Líderes democratas ressentidos instruíram os delegados a optarem por Kefauver, que ganhou a indicação após três rodadas de votação, mas perdeu para o republicano Dwight Eisenhower.

Os superdelegados
» Depois da convenção de 1980, os democratas introduziram no sistema os superdelegados, os quais poderiam votar no candidato de sua escolha, independentemente da decisão dos eleitores. Em 2016, os simpatizantes de Sanders reclamaram que os superdelegados simbolizavam um sistema fraudado, por dar aos líderes e doadores do partido a chance de subverter a vontade dos eleitores. Os democratas, então, alteraram as regras do partido para que os superdelegados votassem somente se houvesse várias rodadas de votação.



Análise da notícia


Ideologia dissoante


Ao cortejar programas sociais implementados por regimes autoritários e demonstrar clara inclinação socialista, Bernie Sanders se tornou uma aposta longe de ser unânime. Suas convicções provocam o temor de danos à própria esquerda. Para muitos norte-americanos, é quase impensável a Casa Branca ser controlada por um político com ideologia antagônica ao capitalismo e atrelada ao liberalismo. A maior potência econômica e militar do planeta nas mãos de um senhor de 78 anos que defende um modelo político similar à social democracia europeia.

Recente pesquisa mostrou que apenas 28% dos norte-americanos têm uma visão favorável do socialismo, comparados a 57% dos cidadãos com ponto de vista positivo sobre o capitalismo. Entre os republicanos, apenas 7% têm uma visão favorável do socialismo. A pecha de “social-democrata” incorporada por Sanders tem impacto desagregador dentro do próprio Partido Democrata. Se os eleitores de New Hampshire e de Nevada avalizaram Sanders nas primárias e no caucus, a regra pode não valer para os delegados, durante a Convenção Nacional Democrata, em julho. É aí que mora o perigo. (RC)

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