Correio Braziliense
postado em 29/02/2020 04:06
Multilateralismo
em quarentena
A marcha do coronavírus para se transformar em pandemia acrescenta um elemento novo a uma das questões mais controversas dos últimos anos no âmbito das relações internacionais — a queda de braço entre os defensores do sistema multilateral, expressão de um mundo mais conectado a cada giro da Terra em torno do Sol, e os partidários intransigentes da autoridade exclusiva dos Estados nacionais. Curiosamente, a rápida expansão da doença é o argumento esgrimido por ambos os lados para sustentar a própria visão e apontar os riscos representados pela posição oposta.
O debate se coloca com um sentido especial de urgência na Europa, onde se multiplicam os casos confirmados de infecção e cada governo multiplica os esforços próprios com o objetivo de minimizar o arrastão do contágio. Enquanto cientistas de diferentes origens se mobilIizam mundo afora em busca de uma vacina e de meios eficazes de tratamento, autoridades sanitárias se debruçam sobre a escolha de caminhos para barrar o vírus nas condições de mobilidade e integração propiciadas pelas normas em vigor na União Europeia, em especial a livre circulação de pessoas.
Todos por todos...
Pela ótica dos multilateralistas, desafios como uma pandemia são exemplos da necessidade incontornável de cooperação e ação conjunta entre os governos nacionais. Segundo esse ponto de vista, nenhuma política isolada de prevenção pode ter eficácia em um mundo no qual as trocas econômicas e comerciais, o intercâmbio acadêmico e até mesmo as interações no terreno esportivo tornariam ilusórias as tentativas de enfrentar a crise pela lógica da quarentena. “O coronavírus entra até na Coreia do Norte”, provoca um diplomata, ironizando a clausura adotada pelo regime de Pyongyang para manter-se imune a influências políticas. “Difícil mesmo vai ser ele sair de lá...”
No que diz respeito ao âmbito da UE, os defensores da integração regional invocam a vantagem que enxergam na coordenação de políticas e na convergência de recursos materiais e humanos para se contrapor a uma maré de contágio que veem como inevitável.
...ou cada um por si
De maneira simétrica e oposta, os adversários da “burocracia de Bruxelas” reiteram a convicção de que seus concidadãos estarão mais seguros quanto maior for a autonomia nacional para adotar medidas de proteção — inclusive eventuais restrições à entrada de cidadãos de países que apresentam maior incidência da infecção. Por essa perspectiva, a comparação é feita com a convivência entre vizinhos. “Você aceitaria esperar por um acordo na assembleia do quarteirão antes de proteger a sua família?”, questiona outro emissário.
A contraposição entre os interesses imediatos dos próprios eleitores e o cipoal de instâncias e normas da Europa comunitária tem sido, ao longo dos anos, o principal combustível para as correntes políticas ultranacionalistas ou mesmo eurofóbicas que ganham terreno nos mais diversos países. Foi, em boa medida, o fermento que inflou os partidários do Brexit e deu ao premiê Boris Johnson os votos necessários para consumar o divórcio entre o Reino Unido e o bloco.
Geopolítica da saúde
Como não seria de estranhar, a epidemia do coronavírus contamina também a geopolítica, sempre exibindo os sintomas clássicos. Fiel ao lema de campanha, “a América em primeiro lugar”, Donald Trump proclamou que os EUA seriam o país em melhores condições para enfrentar o novo desafio. Israel, que preza a própria capacidade no terreno da pesquisa científica, anuncia para breve uma vacina. Cuba, porta-bandeira da medicina social, oferece medicamento eficaz e acessível.
O Irã, que ontem tomou a iniciativa inédita de cancelar as orações em congregação das sextas-feiras — mal comparando, um equivalente muçulmano da missa de domingo —, ergueu as defesas contra o que classificou como um ataque movido pelos arqui-inimigos americanos. O país, um dos focos rápidos de disseminação da doença, até pela proximidade e pelas relações que mantém com a China, acusa Washington de aproveitar a situação para justificar e ampliar a quarentena político-diplomática que mantém há quatro décadas sobre o regime islâmico.
O importante é...
A poucos meses da abertura da Olimpíada de Tóquio, as atenções do mundo esportivo se voltam para os dados sobre a evolução da epidemia na Ásia, em geral, e no Japão em particular. Até o momento, o Comitê Olímpico Internacional rechaça a ideia de cancelamento, adiamento ou transferência de sede.
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