Correio Braziliense
postado em 08/03/2020 04:06
Os ataques ao Congresso desferidos por integrantes do governo Bolsonaro e a mobilização marcada para o dia 15, com uma defesa do presidente da República e protestos generalizados contra os poderes Legislativo e Judiciário, são o mais recente capítulo brasileiro de um problema político histórico na América Latina. Desde a redemocratização do subcontinente, com o fim dos regimes militares a partir da década de 1980, países que tentam restabelecer o equilíbrio entre as instituições se veem combalidos por embates entre os poderes Executivo e Legislativo. Muitas vezes, esses atritos culminam em atos autoritários, como fechamento do Parlamento ou mesmo em manobras constitucionais para a perpetuação de mandatários no poder.
O problema existe em regimes chamados de esquerda, como ocorre na ditadura de Nicolás Maduro, na Venezuela, ou na Bolívia, onde Evo Morales mergulhou o país na instabilidade política ao forçar a reeleição a um quarto mandato presidencial consecutivo. A tensão institucional também está presente nos governos de direita, de tendência liberal conservadora. No Uruguai, o recém-empossado Luis Lacalle Pou — que assumiu o cargo na semana passada — aumentou a pressão sobre o Congresso ao enviar um pacotaço legislativo com mais de 400 artigos de uma ampla diversidade de assuntos. No Peru, o presidente Martín Vizcarra fechou o Parlamento em razão do confronto com os adversários seguidores do ex-ditador Alberto Fujimori.
Para especialistas ouvidos pelo Correio, há uma semelhança entre Jair Bolsonaro e Nicolás Maduro. Assim como o venezuelano, o governante brasileiro se cercou de militares no núcleo do governo. Embora Bolsonaro jamais tenha falado em fechar o Congresso, disputou poder com o Parlamento na última semana, particularmente no tocante ao controle do Orçamento. Antes, o presidente da República havia compartilhado um vídeo sobre a manifestação de 15 de março, que tem na pauta um protesto contra “os inimigos do Brasil” — um convite reforçado ontem, numa escala de viagem aos Estados Unidos. O confronto entre o Executivo e o Congresso acendeu o debate a respeito de como o país se insere na política latino-americana.
Diretora do Latinobarómetro, instituição responsável por promover pesquisas sobre o apoio à democracia em 18 países da América Latina, a chilena Marta Lagos destaca que o regime democrático é alvo constante de questionamentos na região, e sofre de severo descrédito. “A democracia nunca esteve tão mal como está hoje. Além de Venezuela e Peru, temos o exemplo de Equador, Colômbia e Chile, que contam com uma série de problemas. O Brasil, obviamente, também está na lista. O que vemos atualmente não são democracias aparentes, mas, sim, democracias disfarçadas, com casos de corrupção e problemas de desigualdade”, alerta.
Para Marta Lagos, a atitude de Bolsonaro de convocar manifestações é motivo de preocupação. Ela pontua que “manifestar em um estado democrático é um direito”, mas que, a partir do momento em que o presidente da República usa a população contra o Congresso, isso “afeta a independência dos poderes”. “Chamar a população para protestar contra o Parlamento, que é o órgão que representante da sociedade, não é comum e afeta a independência dos poderes do Estado. O Executivo não deveria ter poder contra o Legislativo”, frisa a pesquisadora.
Pêndulo
Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Juliano da Silva Cortinhas lembra que a emergência de movimentos conservadores de extrema-direita ganhou forças em vários países, e não apenas na região sul-americana. “Desde o início do século, nos mais diferentes tipos de Estado, acompanhamos um fenômeno que é um descontentamento da população com a capacidade do governo de atender às necessidades da população. Aqui na América Latina não foi diferente. Tivemos uma série de mudanças. Em uma perspectiva mais macro, tivemos a ascensão de diversos governos de esquerda e, hoje, um câmbio nessa balança, tendendo fortemente para a direita”, avalia.
Para Cortinhas, a tendência, a médio prazo, é de os países continuarem presos ao pêndulo direita-esquerda. Ele alerta que o descontentamento é gerador de ódio político e extremismo. “É quando surge a vontade de encontrar soluções mágicas e nasce a ideia de ‘mito’. Isso é muito ruim. A política é constituída por instituições, partidos, poderes, as leis, a Constituição. E, cada vez mais, o Brasil e até países desenvolvidos se aproximam dos salvadores da pátria”, aponta.
Na opinião de Cortinhas, Brasil e Venezuela, ainda que estejam em lados opostos, têm similaridades, especialmente no que se refere ao peso do militarismo no poder. “As semelhanças com o caso venezuelano, para mim, são muito grandes. É uma combinação de uma perspectiva ideológica radical e as Forças Armadas. É uma combinação que enfraquece a democracia. É uma resposta parecida com a do Chávez. O extremo ideológico é outro, mas a receita é próxima. E Bolsonaro vem atendendo, cada vez mais, aos anseios das instituições armadas. A nova Previdência poupou os militares e lhes deu benefícios. Diferentemente do resto da população”, compara.
“É uma forma de ele manter próximo o braço armado do Estado”, continua o professor da UnB. “No motim no Ceará, em vez de os policiais serem punidos, presos, vêm tendo a proteção e a salvaguarda do Estado, que manda as Forças Armadas para fazer o trabalho da segurança pública, enquanto eles continuam amotinados, pressionando a população, agindo como milícia. É uma permissividade em um estado governado pela oposição, onde o caos aumenta. A saída mais lógica seria que as instituições tomassem para si a defesa da democracia. Um ataque como o do Bolsonaro (que compartilhou vídeos convocando manifestações contra os Poderes), deveria resultar em um processo de impeachment automático”, opina.
Ambiguidade
O sociólogo e cientista político Paulo Baía também traz o Ceará para a leitura da fragilidade democrática no Brasil em relação a outros países da América Latina. “Nós vivemos uma contradição. Temos algumas décadas de sistema democrático funcionando, e agora, um Poder Executivo representado pelo governo Bolsonaro que, a todo instante, testa o sistema com decretos inconstitucionais e falas nebulosas e provocativas. Ao mesmo tempo, temos na sociedade grupos antidemocráticos que querem dissolver o Congresso, o STF, e ganham solidariedade explícita ou implícita do atual governo. Um exemplo é a frase do (Sergio) Moro a respeito do motim da PM. Ele diz que é ilegal, mas que eles não devem ser tratados como bandidos. É uma fala ambígua, que dá força ao motim”, atenta.
Baía não vê nos militares uma ameaça. Ele destaca que é preciso focar na tentativa de quebra das instituições. Como no ato de Bolsonaro de enviar mensagens convocando para protestos, que o estudioso compara com o modus operandi do governo venezuelano. “O presidente não pode conclamar, endossar, mesmo que concorde, uma manifestação contra o Congresso e o STF. Isso representa colocar o Poder Executivo formalmente contra o Legislativo e o Judiciário, prática muito usada na Venezuela. Lá cassaram ministros da Suprema Corte e ganharam eleições em que opositores não puderam concorrer”, lembra.
“Eu avalio que nós corremos riscos, porque existe um apoio grande de uma parte da população a teses antidemocráticas. Entretanto, você ainda tem mecanismos de peso e contrapeso funcionando no Legislativo, Judiciário, imprensa, sociedade civil. Eu digo que estamos vivendo em uma democracia falha”, pondera.
"O que vemos atualmente não são democracias aparentes, mas, sim, democracias disfarçadas, com casos de corrupção e problemas de desigualdade”
Marta Lagos, diretora do Latinobarómetro
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