Correio Braziliense
postado em 31/03/2020 04:05
Diante do aumento expressivo dos casos de Covid-19 nos Estados Unidos, que registram mais de 140 mil casos e quase 2,5 mil mortos, a Food and Drug Administration (FDA) aprovou emergencialmente e de forma limitada o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina. A medida vai ao encontro do desejo do presidente Donald Trump, que, na semana passada, disse que esses medicamentos, originalmente desenvolvidos para malária e doenças reumáticas, poderiam ser um “presente de Deus” contra a pandemia. Por outro lado, contraria as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do principal infectologista norte-americano, Antonio Fauci, um dos diretores dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA.
De acordo com um documento divulgado, na noite de sábado, pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos da agência, o FDA pode liberar medicamentos não aprovados em resposta a “ameaças químicas, biológicas, radiológicas e nucleares”. A autorização de uso restringe-se a pacientes internados, que não tenham acesso aos testes clínicos da substância. Nos EUA, ambas as drogas são objeto de pesquisas com humanos para verificar sua eficácia e a segurança em pacientes com Covid-19.
A polêmica em torno da cloroquina e da hidroxicloroquina já dura algumas semanas, desde que Trump anunciou a liberação das drogas e foi desmentido por Fauci. O cientista esclareceu que a FDA daria prioridade aos estudos das substâncias, mas que, na ocasião, elas não estavam liberadas para outros usos senão de pacientes com malária e doenças reumáticas.
O problema apontado por boa parte da comunidade científica é que não há dados suficientes sobre a eficácia das duas drogas, que, por sua vez, podem ter efeitos colaterais graves, como prejuízo da visão, insuficiência hepática e distúrbios cardiovasculares. Ambos os medicamentos foram utilizados com antivirais em cerca de 100 pacientes chineses e em 42 franceses, obtendo bons resultados. Os outros experimentos foram realizados in vitro, usando linhagens de células animais.
Autofagia
A cloroquina foi primeiramente cogitada para tratar os pacientes de Covid-19 porque ela interfere com um processo chamado autofagia (do grego “comer a si mesmo”). As células usam esse mecanismo como um tipo de reciclagem, “devorando” materiais desnecessários, geralmente para fornecer energia ou outros suprimentos necessários durante os períodos de escassez. Nas doenças infecciosas, os vírus podem se valer da autofagia para, por meio dela, obter matérias-primas necessárias para a replicação.
“Existem evidências de que a autofagia está envolvida na replicação do coronavírus — vimos isso em alguns na síndrome respiratória aguda grave (Sars) e também na síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers). Aparentemente, você precisa ter autofagia para obter a replicação do vírus”, diz Andrew Thorburn, professor e presidente do Departamento de Farmacologia da Universidade do Colorado. Ao inibir esse processo, a cloroquina impediria o Sars-Cov-2 de se multiplicar no organismo.
Thorburn acha a droga promissora, mas ressalta que, em estudos com camundongos, foi demonstrado que a inativação completa da autofagia — o que se espera que a cloroquina faça — aumenta o risco de infecções bacterianas e de neurodegeneração, pois é por meio desse mecanismo que as células eliminam proteínas tóxicas no cérebro. O farmacêutico, contudo, lembra que, desde a década de 1940, o medicamento tem sido utilizado, seja em curto prazo (caso da malária) ou de forma contínua (na artrite reumatoide).
Para Dawn Bowdish, professor de patologia e medicina molecular da Divisão de Pesquisa Imunológica da Universidade de McMaster, no Canadá, a supressão da autofagia que pode beneficiar pacientes de Covid-19 não é uma informação suficiente para justificar a liberação das substâncias. “Estamos desesperados por algo que nos proteja, mas estou prestes a dar más notícias. Atualmente, houve mais de 200 testes clínicos na China de diferentes tratamentos para melhorar o curso da doença. Todos deram errado. Testes com pequeno número de pacientes com o medicamento antimalária mostraram alguma promessa, mas, na verdade, não temos dados suficientes”, diz Bowdish, que comanda um laboratório de estudos de autofagia na universidade.
Estudo polêmico
Um dos cientistas mais entusiastas do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina para combater a Covid-19 é o infectologista francês Didier Raoult, diretor do Instituto Hospital Universitário Mèditerranée Infection (IHU), em Marselha. Foi ele quem conduziu o estudo com 26 pacientes que entusiasmou o presidente Donald Trump. O renomado, premiado e polêmico cientista, que vem sendo chamado de charlatão por colegas franceses, publicou um primeiro estudo mostrando que, combinada ao antibiótico de amplo espectro azitromicina, a hidroxicloroquina curou 75% dos 26 pacientes tratados por sua equipe.
Com base nesse resultado, Raoult tornou-se um grande defensor do uso da substância. Diferentemente dos governos brasileiro e francês, que autorizaram a droga para pacientes graves, o infectologista afirma que ela deve ser ministrada no início da infecção. Segundo ele, a hidroxicloroquina não é eficaz em estágios mais avançados.
A pesquisa de Raoult levantou esperança e críticas ao mesmo tempo. A principal delas devido ao baixo número de participantes. Porém, a metodologia também foi questionada. Uma revisão do estudo feita por pesquisadores britânicos e irlandeses apontou uma falha considerada grave: os pacientes não foram randomizados, isso é, divididos em grupos, para fins de comparação. Além disso, dos 26 pacientes, um morreu e cinco abandonaram o estudo antes do término (três foram internados na UTI, um devido a náuseas e outro porque testou negativo para o vírus). Outra crítica feita pelos autores da revisão é que a maior parte dos recuperados era jovens e tinha bom prognóstico.
Na semana passada, um estudo chinês realizado também com uma pequena quantidade de pacientes, publicado no Jorunal of Zhejiang University, mostrou que o curso da doença foi igual em pessoas que usaram o medicamento e que não receberam hidroxicloroquina. Os 20 participantes foram divididos em dois grupos, sendo que 15 deles utilizaram o medicamento antimalária. Desses, 13 testaram negativo após uma semana de tratamento. No outro grupo, dos 15, 14 estavam livres do vírus no mesmo período, sem que tivessem usado a hidroxicloroquina.
No documento divulgado pela FDA, Denise M. Hinton, cientista-chefe do órgão, afirmou que o recomendado é sempre aprovar um medicamento após diversos estudos clínicos, mas lembrou que nem todos os pacientes de Covid-19 nos Estados Unidos terão acesso a eles. “O Sars-Cov-2 pode causar uma séria doença, que coloca a vida em risco, e condições como doença respiratória grave. Baseado na totalidade de evidências científicas apresentadas ao FDA, é razoável acreditar que o fosfato e o sulfato de hidroxicloroquina podem ser efetivos no tratamento de Covid-19, e que, quando usados nas condições descritas nesta autorização, os conhecidos e potenciais benefícios pesam mais que os conhecidos e potenciais riscos desses produtos”, escreveu Hinton.
"Testes com pequeno número de pacientes com o medicamento antimalária mostraram alguma promessa, mas, na verdade, não temos dados suficientes”
Dawn Bowdish, professor de patologia e medicina molecular da Divisão de Pesquisa Imunológica da Universidade de McMaster
"Quando usados nas condições descritas nessa autorização, os conhecidos e potenciais benefícios pesam mais que os conhecidos e potenciais riscos desses produtos”
Denise M. Hinton, cientista-chefe da Food and Drug Administration, nos EUA
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