Correio Braziliense
postado em 26/04/2020 04:11

CAFÉ DE CHICÓRIA
Quando a turbulência é alta, não pode ser baixa a qualidade da tripulação. Passada a tempestade do coronavírus, haverá uma fila de aviões para pousar e o desastre será pior para quem não se organizar. Não haverá vaga para estacionar seu país.
Em 2013, quando a presidente do Brasil e a chanceler da Alemanha souberam, pelo ex-analista da NSA Edward Snowden, que suas comunicações pessoais foram espionadas por Washington, a denúncia estremeceu mais Rousseff do que Merkel. O diferente grau de raiva das duas definiu seus destinos: a brasileira caiu, a alemã está no poder até hoje.
Se você quiser saber a razão oficial pergunte a Obama, o presidente americano da época, quando foi brecado o PAC/BNDES/BRICS por suspeita de que o Brasil usava o Estado para alavancar um capitalismo de esquerda, tipo chinês. Mas, se preferir uma explicação prosaica, vá de Shakespeare: a raiva é um veneno que bebemos esperando que os outros morram. E a política é dura com o erro cometido com falta de jeito.
O Brasil não deve confundir espionagem com inteligência como o fazem EUA e China. Não adianta “saber” tudo sem inteligência. Ouve-se tudo, sabe-se pouco. Quando o Executivo não entendeu por que estava sendo bisbilhotado é que o Judiciário encontrou apoio para fazer a Lava Jato. Viu crime na falta de jeito e encarcerou o capital nacional.
Agora que o coronavírus mudou o contexto e infectou o chão do liberalismo de fachada, herdado da época de Obama, Trump reedita os mesmos procedimentos do período em que a espionagem causou furor: capitalismo de Estado pode, mas só com os meus capitalistas. Para o Brasil permanece a sina: puro nacional não, café de chicória pode. Se está difícil imaginar um plano de recuperação econômica com dinheiro privado nacional, com dinheiro público, é preciso, literalmente, pagar para ver.
O coronavirus desmoralizou as virtudes da globalização. Se o Brasil quiser sobreviver, o governo terá que uniformizar sua linguagem política-jurídica-econômica para atrair parceiros. Precisa de elevada qualidade interna na gestão público-privada e ajudaria muito parar de demitir ministro por questões pessoais.
O tempo corre. No dia 6 de maio, a União Europeia apresenta seu Fundo de Recuperação trilionário. Não é para reconstruir uma economia destruída, mas realocar recursos para o século 21. Nada de Plano Marshal, é dinheiro doméstico.
O investimento estrangeiro não é caminho para o crescimento, mas a consequência. Cresça e o investimento virá para lucrar com isso. A capacidade inicial tem que ser sempre nacional. Isso envolve, sobretudo, o Estado criar sistemas sustentáveis de endividamento, ambos ancorados em iniciativas que geram retorno.
Sobre o exterior, é necessário evitar animosidades e aumentar parcerias para que comprem de nós. Investimento bom é o que vem para nos ajudar a vender mais serviços e produtos. Todavia, hoje, os maiores privilégios que o Brasil tem são a dimensão do seu mercado e a capacidade de produzir de tudo. Sempre foi, aliás. Só que, às vezes, nos esquecemos disso.
A crise força um rearranjo. Busca-se a concordância da sociedade. Todavia, tem que ser um rearranjo que incorpore aprendizados sobre equívocos passados. Um novo limite fiscal precisa estar atrelado ao desenvolvimento e não a protecionismos improdutivos e inflação. Endividamento, mas com a noção de que na sociedade do conhecimento o capital mais importante é o humano.
Rearranjos são feitos por pactos por meio do Estado. Têm sua face doméstica e sua projeção internacional. A volta do Estado americano claramente intervencionista e patrocinador de suas empresas no continente é um divisor de águas.
Em grande parte tem a ver com os fantasmas que os americanos enxergam no megaprojeto chinês de investimento “Um Cinturão, Uma Rota.” Os EUA têm medo que a nova rota da seda chinesa passe pela América Latina. Não é um medo econômico, mas militar que só é superável pela confiança. O nível de inteligência que os EUA têm sobre o assunto ainda é muito ruim e dá vazão a más decisões: “O que a gente não entende a gente para. Atira e depois pergunta.” O da China pior ainda, mas vem de fato ganhando espaço em meio às dúvidas estratégicas americanas.
O que existe é o certo e o errado na perspectiva do Estado brasileiro e de nosso povo. E projetos são ajustados pela observância de bons processos de amizade e troca. O Brasil precisa continuar reformando e melhorando suas instituições para que a confusão não se instale no país. O Estado deve participar, sem subjugar a sociedade, do esforço para dar ao povo mais capacidade de produção e mobilidade econômica e social. Quando ele funciona sem exagero e injustiça, viver é mais fácil.
Paulo Delgado, sociólogo
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