Correio Braziliense
postado em 20/05/2020 04:06
Antes mesmo de uma vacina ou um tratamento eficiente contra o novo coronavírus se tornar realidade, os Estados Unidos impuseram obstáculos à quebra de patente, ao rejeitarem trechos de uma resolução da Organização Mundial da Saúde (OMS) que “reconhece o papel da imunização extensiva contra a covid-19 como um bem público mundial”. O documento de sete páginas, aprovado em reunião virtual pelos 194 Estados-membros, defende o acesso universal aos produtos e tecnologias de saúde para a resposta à pandemia, o licenciamento de patentes e a ampliação das capacidades de desenvolvimento e de distribuição dos mesmos. Em comunicado à parte, a Missão dos EUA em Genebra afirmou reconhecer a importância do texto sem caráter vinculativo, mas denunciou que três parágrafos alusivos a esses temas “enviam a mensagem errada”.
Sob pressão de Washington, os Estados-membros exortaram o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, a “uma avaliação imparcial, independente e abrangente (…) para revisar a experiência obtida e as lições aprendidas da resposta sanitária internacional coordenada da OMS à covid-19”. Na segunda-feira, o presidente norte-americano, Donald Trump, acusou a Organização Mundial da Saúde de ser um “fantoche da China”. Em carta enviada a Ghebreyesus, o republicano lembrou a suspensão do financiamento dos EUA à entidade e a acusou de fracasso por não investigar a origem do vírus. “O único caminho a seguir para a OMS é se ela puder demonstrar independência da China”, advertiu, ao ameaçar o congelamento permanente do repasse de verbas e a retirada dos Estados Unidos desse fórum internacional. Ontem, o governo chinês acusou Trump de difamação e de usar a China para “fugir de suas obrigações” para com a OMS.
Em entrevista ao Correio, por telefone, Robert Charles Gallo, cofundador do Instituto de Virologia Humana da Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland e da Rede Global de Vírus, e um dos cientistas que isolaram o HIV (causador da Aids), advertiu que uma situação de pandemia exige cooperação internacional. “Os países têm de se juntar e compartilhar o dinheiro para as pesquisas e o desenvolvimento de vacinas e de medicamentos. Nós precisamos de competição nas ciências básicas, não em uma pandemia. A saúde pública mundial precisa ser de qualidade e colaborativa”, comentou. Gallo admitiu que a posição de Trump pode ser considerada egoísta e lembrou que o ex-presidente Georege W. Bush investiu no desenvolvimento de drogas e de protocolos para lidar com HIV. “O governo Bush deu bilhões de dólares em drogas para a África. Alguma coisa precisa ser feita. As empresas podem buscar ajuda bancária, investir e, depois, recuperar seus investimentos.”
Interesse público
Olga Jonas, professora do Instituto de Saúde Global da Universidade de Harvard, concorda com Gallo. “Em uma pandemia, com amplos impactos sanitários e econômicos no mundo, vacinas e medicamentos têm de ser tratados de modo diferente do que para doenças comuns”, disse ao Correio. “As novas vacinas e tratamentos são bem público mundial, pois podem mitigar ou deter a pandemia. É do interesse de todos os países que vacinas, especialmente, se tornem amplamente disponíveis, pois a covid-19 desconhece fronteiras e pode se espalhar muito rapidamente.” Especialista em gerenciamento de riscos de pandemia, Olga entende que as companhias que desenvolverem e produzirem vacinas precisam ser compensadas. “No entanto, é errado confiar na propriedade intelectual e no mercado privado, restringindo a produção e cobrando altos preços”, afirmou.
Michael Head, pesquisador em saúde global pela Faculdade de Medicina da Universidade de Southampton (Reino Unido), explicou à reportagem que qualquer desacordo sobre patentes e propriedade intelectual coloca em risco a distribuição eficiente de vacinas. “Isso também põe em xeque a implementação de um sistema adequado de priorização daqueles em maior vulnerabilidade e que deveriam ser vacinados antes.”
Para o diplomata Rodrigo Reis, diretor executivo do Instituto Global Attitude e especialista em relações internacionais, os Estados Unidos emitem um sinal de que a conservação das patentes de vacinas não deve ser quebrada. “Eles defendem que os governos negociem diretamente com as empresas. Com isso, os EUA mostram, mais uma vez, a defesa dos interesses das empresas farmacêuticas, boa parte delas americanas, em detrimento de um possível acesso a essas vacinas que devem ser lançadas em um futuro próximo.”
- O rascunho da resolução da OMS
“A 73ª Assembleia Mundial da Saúde apela aos Estados-membros, no contexto da pandemia de covid-19, para:
Parágrafo 4 — Que solicitem o acesso universal, oportuno e equitativo e uma distribuição justa de todos os produtos e tecnologias de saúde de qualidade, eficazes e essenciais (…), incluindo seus componentes e precursores exigidos na resposta à pandemia de covid-19 como prioridade global;
Parágrafo 8.2 — Que trabalhem em cooperação em todos os níveis para desenvolver, testar e ampliar a produção de medicamentos, diagnósticos e vacinas seguros, eficazes, de qualidade e acessíveis, em resposta à covid-19, incluindo os mecanismos existentes para (…) licenciamento de patentes, a fim de facilitar o acesso oportuno e equitativo a eles.
Parágrafo 9.8 — (…) Ampliarem as capacidades de desenvolvimento, de fabricação e de distribuição necessárias para o acesso oportuno, transparente e equitativo a vacinas, medicamentos, tratamentos e diagnósticos eficazes, acessíveis, seguros e de qualidade. - O comunicado dos Estados Unidos
“Nós aplaudimos o chamado por uma revisão imparcial, independente e abrangente da resposta da OMS (à pandemia), a ser realizada em consulta com os Estados-membros. (…) Isso ajudará a garantir que tenhamos uma completa e transparente compreensão da fonte do vírus, do cronograma dos eventos (…) e do processo de tomada de decisão para a resposta da OMS.”
“Os Estados Unidos reconhecem a importância do acesso a produtos de saúde acessíveis, seguros, de alta qualidade e efetivos, e o papel crítico que a propriedade intelectual desempenha no incentivo ao desenvolvimento de novos e aprimorados produtos de saúde. No entanto, conforme redigido atualmente, os parágrafos 4, 8.2 e 9.8 enviam a mensagem errada aos inovadores que serão essenciais para as soluções de que o mundo inteiro necessita.”
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