Correio Braziliense
postado em 23/05/2020 04:06
Mais um estudo científico mostra que a cloroquina e seu derivado, a hidroxicloroquina, não oferecem benefícios para pacientes com a covid-19. O trabalho, publicado ontem na revista The Lancet, é a pesquisa com o maior número de pacientes tratados com o medicamento: 96 mil, sendo que quase 15 mil indivíduos receberam a droga antimalárica em combinações com e sem antibióticos. Os pesquisadores também observaram que o remédio está relacionado a um aumento da taxa de mortalidade e de arritmias cardíacas. Diante dos dados, especialistas reforçam as críticas a países que não esperaram informações mais consistentes sobre o fármaco antes de apoiarem o seu uso no combate à atual pandemia, como o Brasil.
Os cientistas analisaram dados de 96.032 pacientes hospitalizados entre 20 de dezembro de 2019 e 14 de abril de 2020 em decorrência de infecção pelo Sars-CoV-2. Todos tiveram alta ou morreram até 21 de abril. Os autores do estudo compararam os resultados de pacientes tratados apenas com cloroquina (1.868), apenas com hidroxicloroquina (3.016), com cloroquina em combinação com um antibiótico (3.783) ou com hidroxicloroquina combinada com um antibiótico (6.221). Os pacientes desses quatro grupos foram comparados com 81.144 indivíduos que formaram o grupo controle, não submetido a nenhuma dessas intervenções.
Ao longo do estudo, 9,3% dos pacientes do grupo controle (7.530) morreram. Todos os quatro tratamentos foram associados a um maior risco de óbito nos centros clínicos. Dos pacientes tratados apenas com cloroquina ou hidroxicloroquina, 16,4% (307) e 18% (543) morreram. Quando os medicamentos foram combinados com antibiótico, a taxa de mortalidade subiu para 22,2% (839) no caso da cloroquina e para 23,8% (1.479) naqueles que receberam hidroxicloroquina.
Ao contabilizar uma série de fatores, como idade, raça, índice de massa corporal e comorbidades variadas, incluindo doenças cardíacas, pulmonares e diabetes, os pesquisadores descobriram que, com esses medicamentos, os pacientes apresentavam risco 45% maior de morrer do que aqueles que tinham outras patologias e foram infectados pelo novo coronavírus.
A equipe também descobriu que arritmias cardíacas graves, que fazem com que a câmara inferior do coração bata rápida e irregularmente, eram mais comuns nos grupos que receberam um dos quatro regimes de tratamento. O maior aumento foi observado no grupo tratado com hidroxicloroquina e antibiótico, em que 8% dos pacientes desenvolveram arritmia cardíaca, em comparação com 0,3% dos pacientes do grupo controle.
“Esse é o primeiro estudo em larga escala a encontrar evidências estatisticamente robustas de que o tratamento com cloroquina ou a hidroxicloroquina não beneficia os pacientes com covid-19. Em vez disso, nossas descobertas sugerem que ela pode estar associada a um risco aumentado de problemas cardíacos graves e risco aumentado de morte”, destaca, em comunicado, Mandeep R. Mehra, principal autor do estudo e diretor executivo do Centro de Doenças Cardíacas Avançadas do Hospital Brigham and Women, nos Estados Unidos.
Mais análises
A cloroquina é um medicamento antimalárico, e a hidroxicloroquina é prescrita do tratamento de doenças autoimunes, como o lúpus e artrite. Ambos medicamentos têm um bom perfil de segurança para essas condições específicas, e os resultados não mostram que esses indivíduos devam parar de tomá-los, frisam os autores do estudo divulgado na revista The Lancet.
O grupo de pesquisa explicou que os dois medicamentos também demonstraram ter efeitos antivirais em testes de laboratório e, portanto, são de interesse como possíveis tratamentos para a covid-19. “Nosso estudo foi bem amplo, mas ensaios clínicos randomizados são essenciais para confirmar quaisquer danos ou benefícios associados a esses agentes. Enquanto isso, sugerimos que esses medicamentos não sejam usados como tratamentos para a covid-19 fora dos ensaios clínicos”, defende Mandeep R. Mehra.
Frank Ruschitzka, diretor do Centro do Coração do Hospital Universitário de Zurique, na Suíça, e coautor do estudo, também ressalta a necessidade de mais análises antes da adoção do uso contra o Sars-CoV-2. O pesquisador criticou governos que têm se apressado na utilização da cloroquina com esse intuito. “Vários países defendem o uso (…) baseados em um pequeno número de experiências anedóticas que sugerem que eles (os medicamentos) podem ter efeitos benéficos para pessoas infectadas pelo vírus Sars-CoV-2. No entanto, estudos anteriores em pequena escala falharam em identificar evidências robustas. Atualmente, sabemos, em nosso estudo, que a chance de esses medicamentos melhorarem os resultados no combate à covid-19 é bastante baixa”, justifica.
Pressão presidencial
Nesta semana, pressionado pelo presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Saúde incluiu o medicamento como opção para o tratamento da covid-19 em casos leves — já havia a liberação para tratamentos de pacientes em estado grave. A mudança no protocolo era um desejo de Bolsonaro, que defende a nova prática mesmo admitindo a não existência de dados científicos que comprovem a eficácia da abordagem.
Palavra de especialista
Sem razões para seguir usando
“Esse estudo corrobora outras pesquisas que saíram neste mês, em várias revistas de renome, como a The Lancet, e todas mostram que a cloroquina não mostrou benefícios para o tratamento da covid-19. Esse último trabalho se destaca principalmente pela análise de um grande número de pacientes e, dessa vez, enxergamos, de forma ainda mais clara, os riscos que estão envolvidos, como a arritmia cardíaca, algo que já sabíamos que poderia ocorrer e que, agora, temos ainda mais certeza. Diante desses dados, não existem mais justificativas para que o uso desse medicamento se torne uma política internacional, principalmente porque vemos que é algo que pode colocar nossa população em risco.”
Natalia Pasternak, fundadora e presidenta do Instituto Questão de Ciência (IQC), em São Paulo
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