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O conhecimento alivia

Estar informado sobre a pandemia ajuda a preservar o bem-estar psicológico, mostra estudo com mais de 14 mil moradores da China. Especialistas alertam sobre a importância de evitar fake news e acreditam que a medida ajuda no enfrentamento de outros traumas

Correio Braziliense
postado em 24/05/2020 04:14
Estar informado sobre a pandemia ajuda a preservar o bem-estar psicológico, mostra estudo com mais de 14 mil moradores da China. Especialistas alertam sobre a importância de evitar fake news e acreditam que a medida ajuda no enfrentamento de outros traumas



Conseguir manter a saúde mental durante a pandemia é um grande desafio. Especialistas indicam uma série de estratégias para essa tarefa, como realizar exercícios físicos frequentemente e ter uma rotina organizada. Outra medida que pode ajudar o equilíbrio psicológico no período de isolamento é manter-se bem informado, segundo um estudo americano.  Os pesquisadores analisaram o comportamento de um grupo de pessoas que vivem na China, país em que a covid-19 surgiu, e observaram melhoras de humor expressivas naquelas que acompanhavam notícias sobre a doença. As descobertas foram apresentadas na revista especializada Psychiatry Research. 

O estudo comportamental durou do início do surto até o auge da pandemia na China. Os pesquisadores analisaram mais de 14 mil pessoas, espalhadas em 32 províncias, que responderam a questionários sobre rotina diária e saúde mental. “Os participantes indicaram se sorriam ou riam muito e se sentiam muito prazer, felicidade, raiva, tristeza, estresse e preocupação”, ilustra, em comunicado, Haiyang Yang, um dos autores do estudo e professor-assistente da Johns Hopkins Carey Business School, nos Estados Unidos.

Com as respostas, os pesquisadores observaram uma grande impacto na saúde mental da população durante as primeiras semanas do surto da doença. “Nas análises, constatamos que o início desse período pandêmico levou a uma queda de 74% no bem-estar emocional geral dos analisados”, conta o autor do estudo. “Os fatores que acentuaram o declínio incluíram residir próximo ao epicentro de um surto, ser membro de um grupo vulnerável, como os idosos, e lidar com problemas de relacionamento, como o casamento”, detalha.

Apesar desses dados negativos, os pesquisadores observaram um ponto bastante positivo nas análises. Os participantes que se consideravam conhecedores do vírus — independentemente da quantidade real de conhecimento sobre ele — experimentaram mais felicidade durante o surto do que aqueles que admitiam não ter informações suficientes sobre a crise sanitária.

Sensação de controle

Os cientistas acreditam que esse efeito benéfico ao humor se deu devido a uma sensação de controle proporcionada pelo acompanhamento de notícias. “Essa percepção de ter mais conhecimento foi associada a um maior senso de controle, que ajudou a proteger o bem-estar emocional dos indivíduos. As percepções das pessoas sobre elas próprias costumam ser mais potentes em influenciar o bem-estar emocional”, explica Yang.

A psicóloga Michelle Nunes também acredita que o senso de controle provocado pelo acompanhamento de notícias pode ter contribuído para ganhos na saúde mental dos voluntários. “Fatores que aumentam essa sensação podem aliviar o efeito prejudicial de um surto epidêmico no bem-estar emocional, ou seja, quanto mais conhecimento sobre a ameaça, melhor você pode se proteger”, afirma.

A especialista brasileira explica que essa condição permite aos indivíduos se comportarem de modo flexível, controlarem o temperamento e o impulso ao agir. “Também conseguimos analisar melhor o contexto, identificando as consequências nas decisões, interpretando as situações de forma correta, planejando soluções e analisando as razões e motivos”, complementa.

Olavo Sant Anna Filho, psicólogo clínico com experiência em emergências e desastres e conselheiro nacional da Cruz Vermelha no Brasil, destaca que os dados do estudo entram em concordância com a prática de especialistas em saúde mental. “A informação como algo benéfico para enfrentar traumas é algo que já sabemos, mas apenas agora temos dados relacionados a uma pandemia. Isso não foi possível anteriormente porque o único caso semelhante foi a gripe espanhola. Naquela época, porém, não havia a preocupação com a saúde mental”, detalha.

Para o psicólogo, a sensação de controle proporcionada pelo consumo de informações impacta em uma das necessidades básicas da sobrevivência humana e, consequentemente, na saúde mental. “O que precisamos basicamente para viver é alimentação, moradia e segurança. Se você diz a uma pessoa que ela precisa passar álcool em gel nas mãos para se manter saudável, por exemplo, ela sabe que tem uma informação que pode ajudá-la a sobreviver, e ela terá a segurança de que precisa”, ilustra.

Olavo Sant Anna Filho acredita que a atual crise levará a pessoas a se preocuparem mais com a saúde mental. “As autoridades definiram que, até 2030, precisamos dar mais foco à saúde mental (leia Para saber mais), que sempre foi negligenciada. Geralmente, as pessoas dão mais valor à saúde física, porque podemos vê-la facilmente, diferentemente das feridas invisíveis. Acredito que, com essa pandemia, isso já mudou. Nunca vi tantas publicações relacionadas ao tema.”

Vulneráveis

O grupo de pesquisa chama a atenção ainda para os cuidados com as populações mais prejudicadas por esse tipo de  crise. “Os recursos para os cuidados de saúde mental devem ser disponibilizados a grupos mais vulneráveis psicologicamente durante uma epidemia. Políticas, programas e intervenções específicos precisam ser desenvolvidos para ajudar a promover relacionamentos familiares positivos durante esses períodos de quarentena”, sugerem.

Michelle Nunes lembra que também é necessário ter cuidado com o conteúdo consumido. “Com mais esclarecimento da situação, as pessoas podem não só mudar comportamentos disfuncionais, como evitar padrões enraizados de pensamentos e crenças que evocam dor e sofrimento na vida”, diz. “Por isso, também é importante estar alerto às  falsas notícias e à regularidade das informações que consumimos. Principalmente se as notícias envolvem a saúde, que são muito disseminadas e provocam medo”, alerta.

A psicóloga acredita que um desdobramento do estudo seria analisar a baixa autoestima e a insegurança  durante períodos de isolamento social. “A autoestima é a avaliação subjetiva que uma pessoa faz de si mesma, como positiva ou negativa em algum grau. Ela molda padrões de comportamento, agindo de modo a pessoa se sentir segura ou insegura, e esse fenômeno acarreta várias outras sensações que estão ligadas a sensações de bem-estar”, explica.




Para saber mais 

Ações detalhadas

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem um Plano de Ação Integral de Saúde Mental com metas a serem seguidas até 2030. O projeto exige mudanças em “atitudes que perpetuam o estigma e a discriminação e que isolaram as pessoas desde os tempos antigos”, destaca a agência das Nações Unidas.

Na inciativa chamada Atlas da Saúde Mental, os principais objetivos do plano de ação são: fortalecer liderança e governança para que as comunidades consigam promover com eficácia a saúde mental, fornecer serviços abrangentes e assistência social para as comunidades, implementar estratégias de promoção e prevenção em saúde mental e fortalecer sistemas que propaguem informação, evidências e pesquisas em saúde mental.




“Com mais esclarecimento da situação, as pessoas podem não só mudar comportamentos disfuncionais, como evitar padrões enraizados de pensamentos e crenças que evocam dor e sofrimento”
Michelle Nunes, psicóloga
 
 
 
 
 

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