Correio Braziliense
postado em 28/05/2020 04:05
Um dos maiores trunfos do Sars-CoV-2 é a habilidade do vírus de entrar nas células do hospedeiro e se replicar sem ser notado. Não à toa, a covid-19 vem sendo chamada, em muitos países, de infecção silenciosa. Se, para a pessoa assintomática, o micro-organismo pode não representar um risco significativo, ela acaba se tornando um contaminador em potencial. Na China, estima-se que mais de 80% dos casos iniciais tenham sido espalhados por quem não tinha sinais da doença. E o número de pessoas que se encaixam nesse perfil pode ser maior do que o se acredita, de acordo com um estudo publicado na revista Thorax, do British Medical Journal.
A pesquisa foi feita com dados de pacientes de um navio que partiu em março de Ushuaia, na Argentina, para um cruzeiro de expedição de 21 dias na Antártica. A ideia dos 128 passageiros, servidos por 95 tripulantes, era se inspirar na rota de Ernest Shackleton, o explorador polar irlandês que, entre 1915 e 1917, liderou três viagens britânicas ao continente de gelo. A reedição da aventura, contudo, não terminou como o esperado. Mais de 100 pessoas foram infectadas pelo coronavírus.
O navio partiu em meados de março, um mês depois de a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar a pandemia da covid-19. De acordo com o artigo, o número de infectados no cruzeiro poderia ser bem maior, não fosse o fato de que, alertados da gravidade do vírus, os organizadores da expedição terem impedido o embarque de pessoas que, nas três semanas anteriores, haviam passado por países com número alto de contágio. O estudo também ressalta outros cuidados preventivos adotados: todos os passageiros tiveram a temperatura aferida antes de entrar na embarcação, e havia estações de higienização das mãos abundantes a bordo.
Porém, em 8 de abril, um primeiro passageiro apresentou febre. “Até então, estávamos nos sentindo bastante seguros, pois foram feitas checagens e, aparentemente, não havia ninguém contaminado a bordo”, conta o autor correspondente do artigo, Alvin J. Ing, da Universidade Macquarie de Sydney, na Austrália, e um dos participantes da expedição. “Estávamos contentes com a viagem, com as paisagens, com nossas fotografias… Até que, no oitavo dia, fomos surpreendidos pela realidade.”
Imediatamente, os demais foram colocados em isolamento nas cabines, e todo contato dos tripulantes com as outras pessoas a bordo, como entrega de refeições, era feito com a equipe paramentada com os equipamentos de proteção individual. Cinco dias depois, o navio chegou a Montevidéu, no Uruguai. Lá, oito passageiros e tripulantes estavam com insuficiência respiratória e tiveram de ser removidos para um hospital.
Nesse ponto, todos os demais foram testados para o Sars-CoV-2. Dos 217 passageiros e tripulantes, 128, ou 59%, estavam contaminados. Desses, somente 19% tiveram algum sintoma. Ou seja, mais de 80% foram infectados, mas sem qualquer sintoma da covid-19. Como se trata de um cruzeiro, os autores do estudo destacam que ninguém a bordo teve contato com outras pessoas, e que o alto índice de contágio se deu em um ambiente hermético, mesmo com todas as medidas preventivas sendo tomadas.
Testes
Segundo Ing, o estudo levanta algumas importantes questões sobre a pandemia. Uma delas é que, mesmo o teste considerado pela OMS padrão ouro para detecção do Sars-CoV-2 pode trazer falsos negativos. “A presença de resultados discordantes em numerosas cabines sugere que pode haver uma taxa significativamente alta de falsos negativos no teste de RT-PCR”, afirma. O médico afirma que alguns passageiros foram testados com esse método a bordo e não diagnosticados com a doença. Porém, depois de alguns dias, precisaram de atendimento hospitalar e, quando refeito, o resultado foi positivo. Além disso, os exames rápidos realizados quando surgiram os primeiros casos não demonstraram acurácia. “Os testes rápidos para identificação de anticorpos não foram confiáveis”, diz Ing.
Em um comentário sobre o estudo, o editor da Thorax, Ian Smyth, da Universidade de Nottingham, observa que a estimativa confiável de pacientes assintomáticos, embora difícil de prever, é significativamente maior do que a divulgada pela OMS no início de março: apenas 1%. “À medida que os países registram mais e mais casos, isso pode significar que uma porcentagem muito maior da população pode ter sido infectada pela covid-19”, sugere. “Independentemente de aqueles que foram infectados serem imunes ou não, os resultados enfatizam a necessidade premente de dados globais precisos sobre quantas pessoas foram contaminadas pelo coronavírus”, conclui.
Bryan Grenfell, professor de biologia evolutiva na Universidade de Princeton, nos EUA, destaca que a habilidade de o Sars-CoV-2 se manter silencioso traz uma série de benefícios para ele. Como não sobrevive fora do hospedeiro, para o vírus, é mais vantajoso que o infectado não fique doente. Para a saúde pública, porém, essa característica traz riscos. Isso dificulta a implementação de estratégias de controle — como identificação, quarentena e rastreamento de contatos. “Pessoas infecciosas que não apresentam sintomas tendem a seguir suas vidas, entrando em contato com muitas pessoas suscetíveis”, destaca o pesquisador, que vem desenvolvendo um modelo matemático sobre a evolução assintomática da pandemia. Por outro lado, ele destaca que pacientes sem sintomas podem gerar menos partículas infecciosas, reduzindo o potencial de transmissão da doença.
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