Mundo

Memória contestada

Vandalização de estátuas de figuras controversas espalha-se pelos EUA e pela Europa. Premiê britânico vê ação extremista em protestos

Correio Braziliense
postado em 13/06/2020 04:13
Busto do rei Balduíno, da Bélgica, coberto de tinta vermelha, em Bruxelas: negação ao passado colonialista

A morte por asfixia de George Floyd, um homem negro de 46 anos estrangulado pelo policial branco Derek Chauvin, em Minnesota (meio-oeste dos Estados Unidos), incitou protestos que varreram o país e chegaram à Europa. Depois de monumentos em homenagem a comandantes confederados — os quais combateram o fim da escravidão, no sul dos EUA — tombarem ou serem pichados na América do Norte, o movimento “Black Lives Matter” (“A vida dos negros importa”, pela tradução livre) tem alvejado peças em vários países europeus. No coração de Londres, a estátua do ex-premiê Winston Churchill, que governou o Reino Unido por duas vezes, de 1940 a 1945 e de 1951 a 1955, precisou ser totalmente protegida por uma caixa de aço, depois de ser pichada com a frase “Churchill era um racista”, no último domingo. O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, denunciou que os protestos foram “infelizmente sequestrados por extremistas inclinados à violência”. Na quinta-feira, moradores de Bristol (sudoeste da Inglaterra) arrancaram o busto do traficante de escravos Edward Colston (1636-1721) e lançaram-no a um rio.



Em Portugal, a estátua do Padre Antônio Vieira (1608-1697), no Largo Trindade Coelho, em Lisboa, foi vandalizada anteontem à tarde com tinta vermelha e a palavra “Descolonize”. O religioso da ordem jesuíta Companhia de Jesus catequizou índios em Olinda e se tornou conhecido como defensor dos direitos dos nativos, que se colocou contra a sua exploração. Na Bélgica, bustos dos reis Leopoldo II (1835-1909) e Balduíno (1930-1993) também foram pichados. Outra estátua de Churchill foi alvo de manifestantes em Praga. Na quinta-feira, o monumento amanheceu com a frase “Era um racista” — mensagem idêntica à deixada na estátua do ex-premiê em Londres, na Praça do Parlamento.

Em uma série de tuítes publicados ontem, Boris Johnson afirmou que a estátua de Churchill “é um lembrete permanente de sua façanha ao salvar este país — e toda a Europa — de uma tirania fascista e racista”. Uma alusão à Alemanha nazista de Adolf Hitler, contra a qual a Inglaterra combateu durante a Segunda Guerra Mundial. “É absurdo e vergonhoso que esse monumento nacional esteja sob risco de ataque por parte de manifestantes violentos”, escreveu, antes de reconhecer erros do antecessor. “Sim, algumas vezes ele expressou opiniões que eram, e são, inaceitáveis para nós, hoje. Mas, ele foi um herói, e merece plenamente seu memorial. Não podemos tentar editar ou censurar o passado. Não podemos fingir uma história diferente”, acrescentou. O chefe de governo ressaltou que “os ataques à polícia e os atos indiscriminados de violência” da semana passada são “intoleráveis e abomináveis.

O prefeito de Londres, o trabalhista Sadiq Khan, externou preocupação ante o risco de mais vandalismo e de violência durante protestos programados para este fim de semana por organizações antirracistas e de extrema direita.



Declarações


Um dos maiores especialistas sobre Churchill do Reino Unido e professor de história moderna da Universidade de Exeter (sudoeste da Inglaterra), Richard B. Toye admitiu ao Correio que existe uma  grande polêmica entre a figura do ex-estadista e o racismo. “Churchill é uma  figura controversa e divisiva, mesmo dentro do Reino Unido. A razão para as alegações de que ele teria sido racista está em suas declarações explícitas. Churchill disse crer que os brancos eram superiores, e os negros, não tão capazes. Também fez declarações horríveis sobre os chineses: afirmou odiar pessoas com olhos de fenda e de tranças”, explicou. “É claro que ele levantou-se contra o nazismo, nas décadas de 1930 e 1940, e tornou-se uma liderança durante a Segunda Guerra Mundial. Isso ajudou a mitigar suas visões sobre o racismo. Algumas pessoas negam as posições racistas de Churchill e sustentam que tais ideias problemáticas eram comuns a quem viveu no fim do século 19. Conservadores e imperialistas não achavam suas visões aceitáveis e viam-nas como extremistas.”

Toye, autor de Churchill’s Empire (“O Império de Churchill”), lembra que a estátua de Churchill foi vandalizada pela primeira vez duas décadas atrás. “Na época, manifestantes antiglobalização pegaram grama e usaram-na para montar um cabelo ao estilo moicano em Churchill. Também pintaram-lhe a boca, como se houvesse sangue escorrendo”, disse. “O que existe de novo é a disseminação de protestos cujo alvo são estátuas de personagens controversos. Isso vale para o busto do ex-comerciante de escravos Edward Colston.” Segundo ele, a causa dos protestos não diz respeito a Churchill, morto desde 1965, mas ao racismo.



  • Eu acho...

    “A defesa de Winston Churchill feita por Boris Johnson era  bastante previsível. O atual premiê é alguém cuja carreira, desde 2014, tem se associado às memórias de seu antecessor. Tanto que Johnson publicou o livro The Churchill factor (‘O fator Churchill’, em inglês), com elogios ao ex-primeiro-ministro. Johnson oferece uma defesa do status quo, para manter as coisas do jeito que estão. Ele vê a reputação de Churchill como algo que pode ajudá-lo.”

    Richard B. Toye, professor de história moderno da Universidade de Exeter, autor de Churchill’s Empire (“O Império de Churchill”)

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