Correio Braziliense
postado em 15/06/2020 06:00
O prédio quase reduzido a cinzas do restaurante da rede de fast-food Wendy’s, em Atlanta (sul do estado da Geórgia), tornou-se ponto de peregrinação e símbolo da revolta antirracial que ganhou fôlego após mais um homem negro morrer nas mãos de um policial branco. “Rayshard Brooks, nós lutaremos por você!”. A mensagem foi escrita em cartaz deixado junto aos escombros, com balões e flores. Em um dos muros danificados, outra mensagem em alusão à vítima: “RIP (indicais de ‘descanse em paz’, em inglês), Rayshard”. Também no local, uma artista finalizava a tela com a imagem do rosto do afro-americano de 27 anos. Pai de três crianças, ele foi assassinado a tiros por Garret Rolfe, na noite de sexta-feira, após supostamente tomar a pistola Taser (de choques elétricos) do policial (veja quadro). A autopsia apontou que a morte deveu-se a “ferimentos provocados por duplo disparo pelas costas”, publicou o diário Atlanta Journal Constitution, no início da noite de ontem. Os dois tiros causaram danos aos órgãos e perda de sangue.
Na madrugada de ontem, manifestantes bloquearam a principal rodovia de Atlanta e atearam fogo ao restaurante — a abordagem e o disparo a Brooks ocorreram do lado de fora do estabelecimento. As autoridades anunciaram uma recompensa de US$ 10 mil a quem fornecer informações sobre os autores do incêndio. Rolfe foi afastado de suas funções, e a chefe de polícia da cidade, Erika Shields, renunciou ao cargo. A promotoria do condado de Fulton classificou como “irracional” a morte de Brooks. “Ele não parecia apresentar nenhum tipo de ameaça a ninguém. O fato de isso ter escalado para sua morte parece-me apenas irracional”, disse o promotor Paul Howard à emissora CNN. “Parece que esse não é o tipo de conversa e incidente que deveriam ter levado à morte de alguém.” As prováveis acusações contra os policiais envolvidos no incidente deverão ser anunciadas na quarta-feira.
Pouco antes de morrer, Rayshard Brooks celebrou o oitavo aniversário de uma das filhas. Divorciado, tinha planos de buscar a menina, no sábado. Pretendiam patinar, juntos. “Ontem (sábado), eles fizeram uma festa para a garota, com bolinhos. Enquanto estávamos sentados lá, ela conversou com a mãe sobre o motivo de o pai não ter voltado para casa”, contou Justin Miller, advogado da família, durante uma entrevista coletiva. O assassinato de Brooks ocorreu 18 dias depois da morte do também cidadão negro George Floyd, asfixiado durante quase 9 minutos pelo joelho do policial branco Derek Chauvin, em Minneapolis.
O Departamento de Polícia de Atlanta divulgou imagens da câmera acoplada ao corpo dos policiais envolvidos na abordagem a Brooks. Elas mostram os agentes conversando com a vítima por cerca de meia hora, depois de ser flagrado dormindo dentro do carro, no drive-thru da Wendy´s. Brooks admite aos policiais que bebeu um copo e meio de álcool, e o bafômetro indica que ele estava bêbado. “Acho que você bebeu demais para dirigir”, diz Rolfe, no vídeo. Brooks resiste, os policiais tentam algemá-lo e alertam: “Você será atingido com a Taser! Pare de lutar!” O afro-americano agarra a pistola Taser, corre e se vira. Neste momento, Rolfe dispara com arma de fogo.
“Se fosse branco...”
“O fato de Rayshard ser negro explica a razão pela qual esses policiais escolheram disparar contra ele pelas costas. Não uma, mas duas vezes. A questão será sempre: se ele fosse branco, os policiais teriam exercido uma forma mais pacífica de contê-lo”, afirmou ao Correio, por e-mail, Decatur Redd, 40 anos, primo de Brooks. “As pessoas dizem ‘Oh, ele estava resistindo e pegou a Taser do policial’, tentando fazer com que o assassinato fosse razoável e justificável. Eles mataram meu primo, atiraram duas vezes pelas costas”, acrescentou.
Segundo Redd, Rayshard era “um homem de família, não um bandido”. “Ele deixou essa cidade em busca do melhor para si. Então, retornou a Atlanta para viver como um homem melhor apenas para ser morto por quem jurou proteger-nos. Rayshard não era uma ameaça, até que tentaram prendê-lo. Conheço meu primo. Ele não tentaria machucar ninguém, estava assustado e tentou, de forma instintiva. Fugir. Tudo o que queremos é justiça. Ele tem filhos, dos quais foi arrancado. Isso dói muito”, desabafou.
O primo de Rayshard admite o medo de que a mídia e as autoridades tentem separar a morte de Brooks de outros assassinatos policiais de homens negros. “Temos de lembrar a razão pela qual protestamos. Estamos no meio de um protesto por justiça igual e para erradicar a brutalidade policial e o racismo. Devemos lembrar que eram dois policiais contra um homem negro de 27 anos.”
O retrato de um crime
A vítima
Rayshard Brooks, 27 anos, afro-americano, pai de três meninas, de 1, de 2 e de 8 anos. Também tinha um enteado, de 13. No dia da morte, tinha comemorado o aniversário da filha mais velha. Segundo advogados, ele trabalhava em um restaurante de comida mexicana em Atlanta.
O atirador
Garrett Rolfe, o policial que atirou em Brooks, foi exonerado do Departamento de Polícia de Atlanta. Uma investigação sobre uso desproporcional da força foi aberta pela promotoria.
A queda da chefe de polícia
Menos de 24 horas depois da morte de Brooks, a chefe de polícia de Atlanta, Erika Shields, renunciou ao cargo. “É hora de a cidade se mover adiante e construir confiança entre a polícia e as comunidades aos quais ela serve”, afirmou Shields, por meio de nota.
O assassinato
Um relatório do Departamento de Polícia de Atlanta indica que, na noite da última sexta-feira, Brooks dormia dentro do carro do lado de fora do restaurante da rede Wendy’s. Funcionários reclamaram à polícia que ele bloqueava a passagem de clientes. Brooks estava bêbado e resistiu quando dois policiais brancos tentaram prendê-lo, disse o Gabinete de Investigação da Geórgia (GBI). Imagens do incidente, divulgadas pela polícia, ontem, mostram uma briga entre policiais e o suspeito, que consegue pegar a pistola Taser (arma imobilizadora) e escapar. O GBI sustenta que “Brooks virou-se e apontou a Taser para o policial, que usava sua arma”, mas as imagens mostram que o suspeito vira as costas para o policial quando ele atira e o fere.
“Saia do pescoço dele!”
“Thao, chequem o pulso dele! Ele não está se movendo, irmão!”, grita um homem negro para o policial Tou Thao, 34 anos, que permanece impassível. Ao fundo, o também policial branco Derek Chauvin aparece ajoelhado sobre o pescoço de George Floyd, um homem negro de 46 anos. Outra mulher, que filma com o celular, pergunta: “Eles o mataram, irmão?”. Com as mãos nos bolsos, Thao nada faz. “Saia do pescoço dele!”, clama o homem. O comparsa de Chauvin aproxima-se e empurra algumas pessoas, antes de retornar à posição original. Testemunhas tentam, em vão, salvar Floyd. Depois que Floyd é colocado em uma ambulância, as pessoas reagem: “Vocês acabaram de matar um homem!”. As imagens são parte de mais um vídeo com o flagrante da morte de Floyd, em 25 de maio passado, em Minneapolis. Elas foram divulgadas por Benjamin Crump, advogado da família de Floyd, que classificou a gravação de “perturbadora”.
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