postado em 20/06/2020 07:00
A igualdade absoluta de direitos pessoais e de propriedade prometida pelo documento assinado naquele 19 de junho de 1865, em Galveston (sul do Texas), jamais tornou-se realidade. No 155º aniversário da abolição da escravatura, milhares de afroamericanos e brancos voltaram às ruas das principais cidades para exigir o fim dos grilhões que ainda aprisionam milhões de negros em uma sociedade longe de vislumbrar a justiça racial e os deixam à mercê da violência policial. Para evitar qualquer mensagem truncada no dia conhecido como Juneteenth e depois de receber críticas, o presidente Donald Trump adiou, de ontem para hoje, o comício em Tulsa (Oklahoma), que marca a retomada da campanha desde o início da pandemia. Em um gesto de boa vontade, o magnata republicano anunciou, no Twitter, que o prefeito G. T. Bynum determinou a suspensão do toque de recolher na cidade.
As manifestações de ontem, as quais contaram com a participação em massa do movimento Black Lives Matter (“Vidas negras importam”, pela tradução livre), evocaram a memória dos afro-americanos George Floyd, 46 anos, e Rayshar Brooks, 27 — o primeiro, asfixiado por um policial branco em Minneapolis; o segundo, morto com disparos pelas costas por outro agente branco, em Atlanta. Os protestos irradiaram-se de Ashton Villa, o casarão em Galveston onde foi lida, em 1965, a ordem de emancipação dos escravos do Texas, para o restante do país. Em 15 cidades, as autoridades usaram drones para monitorar as marchas e prevenir vandalismo.
Em Washington, centenas de pessoas reuniram-se no Memorial Martin Luther King Jr., no Parque West Potomac. Sob a imensa estátua do líder ativista de direitos civis, denunciaram “o racismo, a opressão e a violência policial”. A menos de 4km dali, perto da Casa Branca, outro grupo de manifestantes passeava pela recém-batizada Black Lives Matter Plaza. “Não poderemos eliminar todos os policiais racistas, mas queremos tirar a maioria deles e fazer com que prestem contas”, disse Joshua Hager, 29. Sua companheira, Yamina Benkreira, desejou que a história dos negros seja mais bem ensinada, para que os jovens “tomem consciência” das discriminações. Em Nova York, milhares marcharam por Manhattah carregando cartazes com as imagens de Floyd.
Por ocasião do Juneteenth, Trump divulgou, ontem, uma mensagem dirigida à comunidade negra americana, denunciando “a injustiça inimaginável da escravidão”. Mas, também lançou uma advertência no Twitter aos “manifestantes, anarquistas, saqueadores e delinquentes” que se dirigem a Tulsa. “Eles têm que entender que não serão tratados como em Nova York, Seattle ou Minneapolis. Será muito diferente!”, afirmou, referindo-se a protestos violentos ocorridos naquelas cidades.
Tulsa
Para muitos em Tulsa, cenário de um dos piores massacres raciais nos Estados Unidos, em 1921, a escolha da cidade por Trump para seu primeiro comício desde o início da pandemia reabre uma ferida “sempre dolorosa”. O presidente conservador, muitas vezes acusado por seus críticos de difundir mensagens racistas enquanto defende a América tradicional, originalmente tinha planejado sediar o comício em Tulsa, no Juneteenth. “Uma maioria, se não todas as pessoas, sentiu a chegada de Trump como um tapa na cara e um desrespeito”, disse o reverendo Mareo Johnson, líder do movimento Black Lives Matter em Tulsa, à agência France-Presse. “Negros, mas também brancos, latinos, indígenas... Muitas pessoas diferentes veem Trump como um representante do ódio e do racismo, na medida em que ele não os repreende”, enfatizou.
O magnata republicano, que costuma ser conhecido por seu fraco conhecimento em geografia e história, pode não estar ciente da importância do Juneteenth e da existência do massacre de Tulsa em 1921, desconhecido por muitos de seus concidadãos. “Talvez ele não soubesse ... Mas, neste caso, adiar o ato para o dia seguinte ainda parece um tapa na cara!”, respondeu Johnson, de 47 anos. O massacre racial de 1921, que deixou cerca de 300 mortos e devastou o distrito negro de Greenwood, “ainda é muito sensível, muito doloroso”, disse Michelle Brown, diretora de programas educacionais do Greenwood Cultural Center.
De escravos a empregados
A Guerra da Secessão dos EUA terminou em 9 de abril de 1865, quando Robert Lee, chefe do Exército da Confederação, assinou a rendição. Foram necessários dois meses para que os escravos de Galveston, no Texas, fossem informados de que eram homens livres. Também em 19 de junho de 1865, o general Gordon Granger (foto), comandante das tropas da União, da sacada do casarão Ashton Villa, leu a ordem militar Juneteenth, assinada pelo major F. M. Emery, determinado a emancipação dos escravos. “O povo do Texas é informado que, de acordo com a proclamação do Executivo dos Estados Unidos, todos os escravos estão livres. Isso envolve uma igualdade absoluta de direitos pessoais e direitos de propriedade entre ex-mestres e escravos e a conexão, até então existente entre eles, torna-se a que existe entre empregador e trabalho contratado.”
Também por Juneteenth passou a ser conhecida a data histórica — contração da palavra junho e do número 19 em inglês. O presidente americano, Abraham Lincoln, tinha decretado a libertação dos escravos dois anos e meio antes, ao assinar, em 1º de janeiro de 1863 a proclamação da emancipação. Mas o Texas, que como território do sul fazia parte da Confederação, foi o último estado a libertar os escravos.
Segundo o site Juneteenth.com, as primeiras celebrações da emancipação ocorreram em Galveston, nos primeiros anos depois do fim da Guerra da Secessão. Em 1872, um grupo de ex-escravos comprou um terreno em Houston e fundou um parque batizado como “Emancipation Park” (Parque da Emancipação) para marcar a celebração do Juneteenth. Muitas dessas celebrações caíram no esquecimento no início do século 20, antes que houvesse um ressurgimento nas décadas de 1950 e 1960, durante a luta pelos direitos civis. O feriado do Juneteenth é comemorado em família e celebrações em igrejas.
Símbolo da luta pela liberdade
“O 19 de junho simboliza um ponto de partida ou um marcador da liberdade legalizada para o meu povo. Muitos nunca foram a Ashton Villa, nem aprenderam sobre este local na escola. Isso é desanimador. Eu moro em Dallas e ir até este lugar, no sul do Texas, foi uma sensação especial. Estive, hoje (ontem) pela manhã, na casa nacional da declaração da liberdade. É uma honra. Muitos dos primeiros africanos que foram deixados no Brasil são os mesmos que desembarcaram pela última vez nos EUA. São o mesmo povo.
Ashton Villa, para mim, representa a luta para sermos livres enquanto seres humanos. Assim como os negros precisam lutar no Brasil, ainda que de forma diferente em muitos aspectos. Ashton Villa também representa vocês. Ali, você pode ver a sacada onde a declaração foi lida. Pode experimentar o som da liberdade. Pode ver as faces dos donos de escravos quando souberam que tinham sido derrotados. O ódio deles. Pode sentir as paredes, as mesmas que resistiram a furacões e a inundações ao longo de décadas.
Ainda de pé, ainda forte, ainda representado por que as vidas negras importam. Esse edifício é um monumento global, o qual encorajo todos a visitarem.”, CJ Wilson, ex-jogador de futebol americano da liga NFL e professor da Paul Quin College.
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