Correio Braziliense
postado em 26/06/2020 06:00
O documento leva a assinatura de 74 organizações e de cerca de 500 personalidades — entre elas, ex-chefes de Estado e de governo, incluindo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso; 11 laureados com o Prêmio Nobel da Paz e dois com o Nobel de Literatura; ativistas de direitos humanos; cientistas políticos; parlamentares e jornalistas. Sob iniciativa do Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (Idea International, em Estocolmo) e intitulado A call to defend democracy (“Um chamado para defender a democracia”), o manifesto traz um alerta sobre como “certos governos” se aproveitam da pandemia do novo coronavírus para solapar os direitos individuais e a estabilidade política. “A democracia está sob ameaça, e aqueles que se importam com isso devem convocar a vontade, a disciplina e a solidariedade para defendê-la. Estão em jogo a liberdade, a saúde e a dignidade das pessoas em todos os lugares”, diz o texto.
Além de advertir que regimes autoritários usam a crise sanitária para “silenciar seus críticos” e “endurecer o controle político”, o manifesto sustenta que “alguns governos democraticamente eleitos vêm combatendo a pandemia concentrando poderes de emergência que restringem os direitos humanos e reforçando o Estado de vigilância”. Nesse contexto, afirma o documento, que não cita nominalmente os países problemáticos, parlamentos são desprezados; jornalistas, presos e perseguidos; minorias, convertidas em bodes expiatórios. O Correio entrevistou sete dos signatários (leia nesta página).
Para um deles, Adolfo Garcé — professor do Instituto de Ciência Política da Universidad de la República em Montevidéu —, a defesa global da democracia é “demasiadamente importante para permanecer à margem”. “Não temo pela democracia em meu país, pois a pandemia tem sido brilhantemente manejada pelo governo uruguaio. No entanto, a democracia tem retrocedido no mundo. Nossa região, lamentavelmente, não é exceção. O novo coronavírus criou oportunidade para o incremento da vigilância política e da concentração de poder.”
Edmundo Jarquín, ex-deputado e ex-candidato à Presidência da Nicarágua, afirma que regimes autoritários tendem a negar a pandemia. “Vimos isso na China, ao censurar o médico que alertou sobre o novo coronavírus. Temos testemunhado tal fenômeno na Nicarágua, com a demissão de médicos, por denunciarem a falta de recomendações para proteção aos cidadãos. O documento que nós assinamos é um alerta. Ele mobilizará a opinião pública na defesa da democracia.”
Especialista em ciência política e em relações internacionais pelo Hudson Institute, em Washington, Tod Lindberg reconhece que as democracias enfrentam perigo. “No âmbito interno, indivíduos têm tomado vantagem da liberdade e dos direitos civis para subverter a liberdade e os direitos dos outros. No âmbito externo, o problema é a China, potência em ascensão determinada a persistir como Estado de partido único, que trabalhará em causa comum com outros Estados autoritários”, disse.
Claudio Lodici, coordenador da Conferência Bienal sobre o Estado da Democracia pela Universidade Loyola-Chicago (EUA), contou que assinou o manifesto por entendê-lo como “ferramenta fundamental para difundir a consciência sobre uma rachadura política”. “As pessoas, incluindo os formuladores de políticas, terão de escolher de qual lado da cerca querem ficar: o liberal ou o autoritário”, observou. “Não sabemos quais medicamentos podem combater o novo coronavírus. Mas, sabemos que tipo de governança é necessário.” Segundo Lodici, governos com alta carga de responsabilidade, transparência e confiança provam ter mais sucesso na resposta à pandemia. “Aqueles desprovidos desses fundamentos podem se afastar ainda mais dos princípios democráticos e das normas de direitos humanos.”
Entre os signatários do manifesto, estão Óscar Arias Sánchez, Frederik De Klerk, Shirin Ebadi, Leymah Gbowee, Tawakkol Karman, José Ramos-Horta e Lech Walesa, laureados com o Nobel da Paz; a Nobel de Literatura 2015, Svetlana Alexievich; o ator Richard Gere; e o escritor francês Bernard-Henri Lévy. Além de Fernando Henrique Cardoso, os brasileiros Celso Lafer, ex-chanceler, e Bolívar Lamounier, cientista político, firmaram o documento.
Trechos da carta
“Os regimes autoritários (...) estão usando a crise para silenciar seus críticos e endurecer o controle político.”
“Alguns governos democraticamente eleitos vêm combatendo a pandemia concentrando poderes de emergência que restringem os direitos humanos e reforçando o Estado de vigilância, sem consideração alguma pelas restrições legais, pela supervisão parlamentar ou pelos marcos temporais para a restauração da ordem constitucional.”
“Parlamentos estão sendo deixados de lado, jornalistas sendo presos e perseguidos, minorias sendo convertidas em bodes expiatórios, e os setores mais vulneráveis da população enfrentam novos e alarmantes perigos, à medida que o fechamento de emergência da economia devasta o tecido das sociedades .”
» Povo fala
Tamara Adrian, deputada opositora venezuelana pela Mesa de Unidade Democrática (MUD) e primeira parlamentar transexual
das Américas: “A sociedade civil organizada conhece bem os perigos impostos à democracia em tempos de pandemia. O documento que firmamos é uma forma de validar a luta que tem sido travada.”
Adolfo Garcé, professor do Instituto de Ciência Política da Universidad de la República, em Montevidéu (Uruguai): “Não me atrevo a ser muito enfático sobre o resultado do manifesto. É possível que contribua para mobilizar a sociedade naqueles locais onde as liberdades políticas estão sendo atacadas no contexto da pandemia.”
Gulalai Islmail, fundadora e presidente da ONG Aware Girls, de promoção da igualdade de gênero e da paz, no Paquistão: “Precisamos nos unir e pressionar pelas liberdades cívicas, em solidariedade uns com os outros. Os governos fascistas não podem usar livremente a pandemia como desculpa para restringir nossos direitos. Um dia, a pandemia acabará e as restrições
não serão revertidas.”
Edmundo Jarquín, ex-deputado e ex-candidato à Presidência da Nicarágua: “No nosso continente, os casos mais preocupantes são o Brasil e a Nicarágua. No Brasil, há resistência dos governos e das prefeituras, e a Justiça obrigou o presidente Jair Bolsonaro a usar máscara. Na Nicarágua, a falta de legitimidade da ditadura de Daniel Ortega é tamanha que o povo tem mais obedecido à Organização Mundial da Saúde (OMS) e à sociedade
civil do que ao governo.”
Tod Lindberg, especialista em ciência política pelo Hudson Institute, em Washington: “Nós precisamos de uma reafirmação de princípios básicos, especialmente em tempos estressantes, como uma pandemia. Não há fundamento na Justiça para o poder de um indivíduo ou de poucos privilegiados sobre outros. Governos responsáveis perante o povo são melhores e mais receptivos ao bem comum.”
Anar Mammadli, ativista dos direitos humanos no Azerbaijão, ex-preso político e diretor do Centro de Estudos sobre Democracia e Monitoramento Eleitoral (em Baku): “Depois do início da pandemia do novo coronavírus, em muitos países houve um aumento na restrição das liberdades políticas e de movimento. Em tais circunstâncias, considero vital erguermos a voz em proteção da democracia, durante a pandemia. A Turquia e a Rússia, por exemplo, detiveram jornalistas e líderes políticos importantes.”
Claudio Lodici, coordenador da Conferência Bienal sobre o Estado da Democracia da Universidade Loyola-Chicago (EUA):
“Governos, sociedade civil e parceiros têm uma riqueza de ferramentas à disposição para ajudar no fortalecimento da boa governança e aumentar a transparência e a responsabilização. Empresas podem se comprometer com negociações justas, exibindo, também, transparência e responsabilidade. Podemos manter os governos honestos, investir mais em saúde pública e garantir respostas à pandemia baseadas em dados científicos, a fim de salvar vidas.”
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