Correio Braziliense
postado em 27/06/2020 07:00
A pouco mais de quatro meses das eleições e em meio a uma pandemia que infectou 2,4 milhões de norte-americanos, matou 124,8 mil e forçou estados a frearem a reabertura (leia nesta página), um pedido da Casa Branca à Suprema Corte provocou uma enxurrada de críticas ao presidente Donald Trump. Às 23h de quinta-feira (zero hora de ontem em Brasília), o governo republicano apresentou à máxima instância do Judiciário uma petição para revogar a Lei de Proteção e Cuidado Acessível ao Paciente (ACA). O sistema permite a milhões de cidadãos adquirirem um seguro de saúde a preços subsidiados e foi criado pelo ex-presidente democrata Barack Obama, recebendo o nome de “Obamacare”.
Até 2017, quem não se inscrevesse no plano pagaria multa, eliminada pelo Congresso. Com o fim da penalidade, o Departamento de Justiça (DoJ) apontou para inconstitucionalidade. Os principais nomes do Partido Democrata consideraram repulsiva a manobra de Trump. “A campanha (…) para eliminar as proteções e os benefícios da ACA, no meio da crise do coronavírus, é um ato de crueldade insondável”, lamentou Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes, de maioria opositora.
Pelosi advertiu que 130 milhões de americanos poderão perder as proteções da ACA e outros 23 milhões ficarão completamente sem a cobertura de saúde, caso a Suprema Corte considere válida a petição do governo. “Não existe justificativa legal nem desculpa moral para os desastrosos esforços da administração Trump de retirar os cuidados à saúde dos americanos”, declarou. Ela garantiu que o Partido Democrata seguirá trabalhando no desenvolvimento da ACA, com a redução dos custos de atendimento médico e de medicamentos prescritos para a população.
No Senado, o líder da minoria democrata Chuck Schumer disse que o governo “apresentou a petição para tentar retirar a atenção à saúde de milhões de americanos, na calada da noite, no meio de uma pandemia global”. “Isso é cruel”, destacou.
Joe Biden, candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos, não fez menção direta aos planos de revogação da ACA. No entanto, publicou um vídeo no Twitter, ontem, no qual ataca a postura de Trump na gestão da pandemia. “Se eu tiver a honra de ser presidente, prometo que liderarei”, disse. “Colocarei a família norte-americana em primeiro lugar. Isso começará com a dramática expansão da cobertura da saúde e com passos contundentes para reduzir os custos do atendimento médico”, prometeu. Até o fechamentp desta edição, Obama não tinha se pronunciado sobre o assunto.
O Departamento de Justiça também solicitou a revogação da cobertura do Obamacare a pessoas com doenças preexistentes — o sistema determina que as seguradoras não possam rejeitar clientes, com base na idade, sexo ou condição de saúde.
“Deplorável”
Em entrevista ao Correio, Gerald Kominski — professor do Departamento de Política e Gestão de Saúde da Faculdade de Saúde Pública Fielding da Universidade da Califórnia (Ucla) — afirmou que os esforços de Trump em revogar o Obamacare por meio da Suprema Corte são um “ato deplorável”. “Como os republicanos não têm votos suficientes no Congresso para cumprir com sua meta, eles estão usando um caso judicial para tentar anular a lei”, explicou. “Como o governo não acredita que a pandemia seja muito grave, envida esforços para revogar a legislação por fundamentos políticos e religiosos. As autoridades da gestão Trump não se importam com as consequências para a saúde do cidadão.”
Kominski adverte sobre as consequências da revogação do Obamacare. “Mais do que 20 milhões de americanos ficarão sem o plano de saúde, além de milhões que também o perderam após a demissão, por conta da pandemia. No momento em que o governo federal deveria fazer tudo o que puder para proteger a saúde pública, está fazendo o mínimo possível, deixando a responsabilidade principalmente aos estados”, acrescentou o estudioso da Ucla.
Palavra do especialista
Liberdade que mata
“Como os casos de infecção pelo novo coronavírus e as hospitalizações estão aumentando rapidamente na maioria dos estados norte-americanos, os esforços dos EUA para controlar a pandemia estão fracassando. Mesmo o simples ato de usar uma máscara em público, que é uniformemente reconhecido como a medida mais eficaz para reduzir riscos, tem sido politizado no país.
Muitos americanos, inclusive o presidente, recusam-se a usar a proteção porque isso restringe sua ‘liberdade’ . Esse tipo de pensamento resultará em dezenas de milhares de mortes evitáveis nos próximos poucos meses. Ao longo de um ano e meio, isso pode resultar em centenas de milhares de óbitos evitáveis. Tudo em nome da ‘liberdade’ política.”, Gerald Kominski, professor do Departamento de Política e Gestão de Saúde da Faculdade de Saúde Pública Fielding da Universidade da Califórnia (Ucla).
Análise da notícia
Obama é o problema
A obsessão do presidente Donald Trump é apagar o legado de seu antecessor, o democrata Barack Obama, ainda que isso tenha custos políticos. Exemplos não faltam. Sob a gestão republicana, os Estados Unidos desprezaram o Acordo de Paris, que previa compromissos ambiciosos para a mitigação das mudanças climáticas. Também se retiraram do Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA), um esforço multilateral para impedir que o Irã impulsione o programa de energia nuclear e desenvolva arsenal atômico, ainda que Teerã tenha, por várias vezes, refutado o ímpeto armamentista e sublinhado o caráter pacífico do mesmo.
Trump expôs, mais do que Obama, uma postura crítica em relação a Cuba, ao reverter a aproximação diplomática entre os dois países. O magnata também escancarou a simpatia por Israel, ao reconhecer Jerusalém como capital do Estado judeu e ao mover a Embaixada dos EUA de Tel Aviv para a cidade sagrada, para as três religiões monoteístas. Obama mantinha uma postura não tão assertiva em relação ao conflito do Oriente Médio. Para satisfazer a própria base eleitoral, Trump rejeita o passado e trai, de certa forma, o slogan de campanha e de governo “A América em primeiro lugar”. O problema do atual presidente dos EUA chama-se Obama.
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