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Equilíbrio ancestral

Análise em sítios arqueológicos da Amazônia mostra que povos antigos domesticavam árvores para a subsistência, mas também se preocupavam em manter a floresta protegida e diversificada

Correio Braziliense
postado em 27/06/2020 04:05
Geoglifo Tequinho, no Acre: espaços de rituais para lembrar o respeito ao meio ambiente e às gerações passadas
 
Há 10 anos, grandes terraplenagens geométricas, chamadas geoglifos, foram descobertas no sudoeste da Amazônia. Especialistas revelaram, à época, que uma civilização pré-colonial desconhecida teria construído os centros cerimoniais e sistemas rodoviários sofisticados na região. Cientistas finlandeses e brasileiros seguem investigando os povos antigos da área. Agora, em um estudo publicado na revista Environmental Archaeology, mostram que esses grandes projetos não apenas moldaram a paisagem da região, como também impactaram na construção diversificada da floresta tropical.

A civilização estudada viveu na Amazônia há 2 mil anos. Segundo os autores do estudo, além do cultivo de mandioca, milho e abóbora, a proteção, o cuidado e o plantio de várias árvores ajudaram a suprir a demanda por alimentos. “Em particular, nozes e palmeiras brasileiras, com frutas ricas em proteínas. Elas são comuns em amostras de locais geoglíficos e mostram a dieta pré-colonial dos locais de cerimônia”, detalham no texto.

O artigo também descreve que a domesticação de árvores não foi um processo linear, pois formas silvestres de plantas também foram protegidas na região. Durante as escavações arqueológicas, a equipe encontrou formas selvagens e domesticadas de frutos de palmeira de pessegueiro, por exemplo.

No caso das castanheiras brasileiras e muitas palmeiras, a interferência humana no cultivo ficou evidente. “Seus frutos são claramente maiores do que eram há 2 mil anos. Um processo não linear de domesticação é evidente, pois as palmeiras silvestres e domesticadas ainda são bem conhecidas pelos povos indígenas no estado do Acre, e essas se espalharam por uma área muito grande na Amazônia”, explica, em comunicado, Pirjo Kristiina Virtanen, professora-assistente da Universidade de Helsinque e autora do estudo. O trabalho também contou com a participação de pesquisadores da Universidade Federal do Acre.

Ao longo dos anos, o impacto humano na Floresta Amazônica tem sido significativo. Ao ponto de não existir mais áreas virgens, segundo os autores. O estudo mostra que, no passado, a história foi diferente. Os povos indígenas da região conseguiram usar os recursos ambientais de maneira sustentável, domesticando algumas plantas, mas também protegendo e respeitando a flora. Não há indicação de que grandes áreas florestais teriam sido desmatadas, por exemplo.

Segundo os cientistas, as novas descobertas argumentam contra a noção idealista da Floresta Amazônica intocada, mas, ao mesmo tempo, reforçam como os povos indígenas utilizavam plantas silvestres enquanto domesticavam plantas para uso humano sem enfrentar dificuldades. “A relação entre os povos da Amazônia e a floresta mostrou-se sustentável e deve ser mais explorada. Lições podem ser aprendidas com isso”, defendem.

Para a equipe, os geoglifos indicam essa relação mais harmoniosa com o meio ambiente. Acredita-se que as terraplenagens geométricas eram espaços de comunicação ritual. Pelos desenhos, membros da comunidade se comunicavam com vários seres, como espíritos ancestrais, animais e corpos celestes. Assim, as pessoas eram constantemente lembradas de que a vida humana estava entrelaçada com o meio ambiente e as gerações anteriores. Os povos indígenas contemporâneos do Acre ainda consideram os locais de terraplenagem como lugares sagrados. Evitam, por exemplo, usá-los como local de moradia e de agricultura.

Concentrados no Acre
Esses sítios arqueológicos são chamados de geoglifos do Acre porque a maioria deles está localizada nesse estado. Quase 500 já foram registrados e incluídos na Lista Provisória do Estado Brasileiro para inscrição na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco. As valas de terraplenagem formam padrões geométricos, como quadrados, círculos, elipses e octógonos. Elas podem ter vários metros de profundidade e incluir áreas de centenas de metros quadrados.

"A relação entre os povos da Amazônia e a floresta mostrou-se sustentável e deve ser mais explorada. Lições podem ser aprendidas com isso”
Trecho de artigo divulgado na revista Environmental Archaeology

Áreas mais férteis

Um estudo feito por cientistas ingleses e brasileiros mostra como inovações feitas pelos primeiros habitantes da Amazônia para aumentar a fertilidade do solo seguem gerando impacto na biodiversidade da região. Os dados foram apresentados em um artigo publicado na revista especializada Global Ecology and Biogeography.

Segundo os autores, os solos eram fertilizados com carvão que sobrava de fogueiras e resíduos de alimentos. As áreas ficaram com uma “terra mais escura”, composto por um conjunto diferente de espécies da paisagem circundante e, dessa forma, contribuindo para um ecossistema mais diversificado, com uma coleção mais rica de espécies vegetais. Segundo os cientistas, esse gerenciamento resultou em milhares de fragmentos de terra escura espalhados pela região, a maioria do tamanho de um pequeno campo.

A equipe de ecologistas e arqueólogos estudou áreas abandonadas ao longo do principal trecho do Rio Amazonas, próximo a Tapajós e nas cabeceiras da bacia do rio Xingu, no sul da Amazônia. “Essa é uma área em que crescem florestas exuberantes, com árvores colossais de diferentes espécies da floresta circundante, com árvores frutíferas mais comestíveis, como taperebá e jatobá”, detalha, em comunicado, Edmar Almeida de Oliveira, principal autor do estudo e pesquisador da Universidade do Estado de Mato Grosso.

Foram analisadas amostras da terra no sul e no leste da Amazônia. Detectou-se que a terra tem um pH significativamente mais alto e mais nutrientes que melhoram a fertilidade do solo. Fragmentos de cerâmica e de outros artefatos também foram encontrados nesses solos escuros. “Depois de terem sido abandonados por centenas de anos, ainda encontramos uma impressão digital do antigo uso da terra nas florestas, como um legado da população amazônica pré-colombiana”, enfatiza Ted Feldpausch, pesquisador da Universidade de Exeter e coautor do estudo.


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