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O passado que assombra

Muçulmanos da Bósnia relembram o 25º aniversário do genocídio cometido pelas forças sérvias, em 11 de julho de 1995. Sobrevivente relata ao Correio que não consegue esquecer o "dia em que foram traídos e assassinados"

Correio Braziliense
postado em 12/07/2020 04:14
Mulher bósnia que escapou da morte durante o genocídio visita túmulos de familiares, em Potocari

Almasa Salihovic, 33 anos, tinha 8 quando os soldados sérvios da Bósnia invadiram Srebrenica, um território declarado “zona segura” pela Organização das Nações Unidas, em 11 de julho de 1995. Sob as ordens do comandante militar Ratko Mladic, exterminaram 8 mil adolescentes e adultos bósnios, todos eles homens muçulmanos. “Eu era apenas uma criança, mas me recordo de tudo tão claramente. Imaginava que fosse algo que eu esqueceria, mas isso nunca ocorreu”, desabafou Almasa ao Correio. “O 11 de julho será sempre um dos dias mais tristes da minha vida e de minha família. O dia em que perdi um irmão de 18 anos, o dia em que fomos traídos e abandonados para sermos assassinados”, acrescentou a sobrevivente do massacre de Srebrenica, uma professora de inglês que ainda vive na cidade.

A agonia da família de Almasa teve início em 1993, quando foi forçada a fugir do vilarejo Skejici, perto da fronteira com a Sérvia, e deixar tudo para trás, em meio aos bombardeios. “Decidimos partir quando atingiram a nossa escola. Eu, meus quatro irmãos e mamãe. Chegamos a Srebrenica e ficamos em quarto oferecido por parentes. Achávamos que estaríamos protegidos, até aquele 11 de julho de 1995”, relatou. Fatima, a irmã mais velha, e o irmão Abdulah conseguiram refúgio em uma fábrica de baterias transformada em instalações da ONU. “Eu, mamãe e dois irmãos não conseguimos entrar no local, que estava lotado. Passamos dois dias e duas noites do lado de fora, encostados na parede da fábrica. Escutamos gritos horríveis, pois os soldados sérvios vinham à noite e levavam homens adultos e adolescentes. Mulheres imploravam para que não fossem levados”, disse.

No terceiro dia, Almasa embarcou em um ônibus, sem ter notícias de Fatima e de Abdulah. “No caminho até o território livre, civis sérvios parados à margem da estrada cuspiam nos ônibus e mostravam a língua e os dedos”, lembra. Um soldado sérvio entrou no veículo, sentou-se ao lado dela e começou a gritar, pedindo ouro, prata e dinheiro. “Eu senti tanto medo que me levantei e ofereci-lhe minha boneca. Implorei que a levasse. O motorista pediu que ele saísse do ônibus. À noite, Fatima chegou sozinha. Ela nos contou que os soldados sérvios capturaram Abdulah. Nunca mais o vimos.” Em 2008, Almasa recebeu um telefonema do Instituto para Pessoas Desaparecidas. Encontraram 30% do corpo de Abdulah em uma cova coletiva secundária. Ontem, assim como faz religiosamente em 11 de julho, Almasa visitou o túmulo do irmão, que foi sepultado naquele mesmo ano.

Também no 25º aniversário do massacre e em uma cerimônia discreta, por conta da pandemia do novo coronavírus, familiares sepultaram nove vítimas — cujos restos mortais foram identificados apenas em julho passado — no cemitério do Monumento do Genocídio, na cidade de Potocari, vizinha a Srebrenica. Ao todo, 6.900 dos 8 mil mortos foram encontrados e sepultados em valas comuns. Os líderes políticos sérvios-bósnios insistem no negacionismo e depreciam a tragédia ocorrida em 11 de julho de 1995. Milorad Dodik, membro sérvio da presidência colegiada da Bósnia, recusa-se a aceitar o termo “genocídio” e prefere a palavra “mito”. O prefeito sérvio de Srebrenica, Mladen Grijicic, afirmou que “todos os dias há novas provas que negam a apresentação atual de tudo o que aconteceu”.


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“Ainda é duro explicar o que era a vida durante aqueles dois anos de guerra, em Srebrenica. As pessoas praticamente viviam nas ruas, pois milhares tinham fugido de seus vilarejos rumo à cidade, programada área segura pela ONU. Todos imaginávamos que os capacetes azuis holandeses nos protegeriam. Mas não o fizeram. Vivemos como mendigos por dois anos: quase sem comida, sem água e eletricidade, as pessoas morriam em condições horríveis. Quando 11 de julho chegou, eles deixaram que nossos pais, irmãos e tios fossem mortos. Simplesmente nada fizeram. De minhas lembranças, recordo-me de ter visto uma campina cheia de homens e de meninos, todos sentados com as mãos atrás da cabeça.”

Almasa Salihovic, 33 anos, professora de inglês, sobrevivente do massacre de Srebrenica


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