Correio Braziliense
postado em 22/07/2020 04:19
Desta vez, a guerra não envolve soldados, nem aviões ou tanques. Para se antecipar aos danos provocados pelo inimigo invisível, os 27 países-membros da União Europeia (UE) firmaram, ontem, um acordo de recuperação econômica histórica. O chamado “Plano Marshall da Europa” deve injetar na economia do bloco 750 bilhões de euros, ou R$ 4,4 trilhões — cerca de R$ 1,1 trilhão a mais do que o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil. O fundo se baseia na mutualização de dívida (veja arte). Depois de 90 horas de discussões difíceis, marcadas pela resistência de Holanda e Hungria, as lideranças da UE celebraram acordo, que deve mitigar os efeitos da pandemia do novo coronavírus sobre as finanças dos Estados. “É um pacote ambicioso e abrangente, que combina o orçamento clássico com um esforço extraordinário de recuperação destinado a combater os efeitos de uma crise sem precedentes no melhor interesse da UE”, afirmaram os chefes de Estado e de governo em declaração conjunta.
“Nós o fizemos! A Europa está forte. A Europa está unida. Este é um bom acordo, um acordo forte, e, o mais importante, o acordo certo para a Europa, agora”, comemorou o belga Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, órgão executivo da UE, e anfitrião da cúpula realizada em Bruxelas. Horas antes, por volta de 0h30 de ontem (19h30 de segunda-feira em Brasília), ele anunciou, por meio do Twitter: “Acordo!”. Michel avaliou que o pacto “é a prova de que a mágica do projeto europeu está funcionando”. “Nossa união de valores, que reúne 450 milhões de cidadãos, demonstra capacidade, quando o momento exige resposta com força e robustez”, comentou o ex-premiê da Bélgica.
Os 750 bilhões de euros serão captados em forma de empréstimos dos mercados financeiros e repassados aos países (390 bilhões de euros) como subsídios e empréstimos (360 bilhões de euros). Além de Michel, o presidente francês, Emmanuel Macron, e a chanceler alemã, Angela Merkel, saem fortalecidos com o plano. Enquanto Macron começa a marcar posição para a reeleição, em abril de 2022, Merkel desistiu de concorrer a novo mandato no próximo ano e pretende deixar um legado político.
Impacto
Macron celebrou um “dia histórico para a Europa” e disse acreditar que as negociações em Bruxelas terão impacto concreto sobre a vida do povo francês. “O acordo protege sua renda por sete anos!”, afirmou. “Hoje, vivemos o momento mais importante para a Europa desde a criação da zona do euro! Este sucesso é fruto de três anos de trabalho em que os franceses confiaram em mim”, acrescentou. “Nós estabelecemos as bases financeiras para a UE pelos próximos sete anos e demos uma resposta à maior crise da União Europeia”, reagiu Merkel.
“Foi uma vitória para Merkel, Macron e Michel”, admitiu ao Correio Ulrich von Alemann, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Dusseldorf (oeste da Alemanha). “O trio conseguiu manter a União Europeia coesa, algo muito importante. Mas, o pacto também representou o triunfo dos premiês Mark Rutte (Holanda) e Viktor Orbán (Hungria). Ambos mostraram que há limites de poder para Merkel, Macron e Michel”, acrescentou, em referência aos líderes que impuseram obstáculos às negociações.
Por sua vez, Jean Yves-Camus, cientista político do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas de Paris (Iris), explicou à reportagem que o futuro de Macron não depende do acordo firmado ontem, mas da extensão da crise social causada pela pandemia. “Ainda assim, o pacto é um trunfo para o presidente. Por isso, ele disse que o acordo é o evento mais importante desde o surgimento do euro, o que significa que foi o próprio Macron quem costurou o pacto histórico”, disse. “Merkel poderia deixar uma marca ainda maior na história, como líder que deu à UE novo impulso, a primeira resposta financeira comum a uma crise social global.”
Camus lembra que a chanceler alemã deixará o poder após as eleições de 2021, enquanto Macron se candidatará a novo mandato em 2020. “O índice de popularidade do francês é de 37%, muito mais baixo do que o de seu antigo e atual primeiros-ministros. Caso concorra com Marine Le Pen, da Frente Nacional, Macron deverá ter vitória assegurada.
Especialista em política europeia e União Europeia pela Universidade Rutgers (Nova Jersey, EUA), Roger Daniel Kelemen concorda que o acordo representa uma vitória para Merkel e Macron. De acordo com ele, a chanceler alemã mostrou a liderança do “motor franco-alemão” e poderia alcançar passos históricos rumo à consolidação da integração europeia. “Sua liderança foi crucial para construir o consenso sobre uma reposta ambiciosa à recessão resultante da pandemia. O pacote dá um grande passo em direção a essa integração”, explicou ao Correio.
» Pontos de vista
» Por Ulrich von Alemann
“Pato manco”em Berlim
“Angela Merkel assumiu a posição de ‘pato manco’, não concorre mais ao cargo de chefe de governo. Talvez, com o plano anunciado em Bruxelas, ela esteja moldando a própria imagem para a história. Mas, isso é tudo. O chanceler Helmut Kohl (1982-1998) era um historiador e estava ciente de sua imagem na história o tempo todo. Konrad Adenauer (1949-1963) e Willy Brandt (1969-1974) também. Merkel é diferente. Ela é uma médica. Olha para os resultados agora. ‘Qual é o efeito quando faço isso?’. Sim, ela é uma estrategista e questiona qual é a cadeia de efeitos quando toma uma atitude. No entanto, duvido que pense em questão de décadas. A longo prazo, todos estaremos mortos.”
Professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade HeinrichHeine (em Dusseldorf)
» Por Jean Yves-Camus
Aliança preservada
“Este foi, obviamente, o melhor acordo possível de se obter, ante a postura desafiadora dos países nórdicos e da Holanda. Sem dúvida alguma, foi uma vitória política para os líderes da Alemanha e da França. Merkel e Macron mostraram que a aliança entre suas nações permanece como força motriz na moldagem da política da União Europeia. Não se trata de uma vitória do eixo Paris-Berlim. Os países do sul — ou seja, Espanha, Portugal, Itália e Grécia — também receberão uma recompensa por suas políticas responsáveis de enfrentamento à crise provocada pela pandemia da covid-19.”
Cientista político do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris, em Paris)
» Por Roger Daniel Kelemen
Macron mais forte
“O acordo fortalecerá Emmanuel Macron, pois será visto como uma vitória por sua visão em direção a uma União Europeia mais coesa. Por sua vez, Angela Merkel está com o mandato próximo do fim. Por isso, não se mostra tão focada em ganhos políticos imediatos, tanto quanto em consolidar seu legado para a liderança no continente. Mas, certamente, a consolidação do plano de recuperação econômica do bloco é bom para o partido de Merkel (União Democrata-Cristã).”
Especialista em política europeia e União Europeia pela Universidade Rutgers (Nova Jersey, EUA)
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