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O troco de Pequim

Em respeito ao princípio da reciprocidade diplomática, governo de Xi Jinping determina o fechamento do consulado norte-americano em Chengdu. Três dias antes, Trump tinha ordenado a mesma medida à representação chinesa em Houston

Correio Braziliense
postado em 25/07/2020 04:14
Policial mantém guarda na entrada do consulado dos Estados Unidos, em Chengdu, enquanto pedestre é vista diante da representação: novo 
foco de conflito
 
Com 16,33 milhões de habitantes, Chengdu, capital da província de Sichuan, foi escolhida pelo governo da China para aplicar o princípio da reciprocidade diplomática contra os Estados Unidos. Em mais um capítulo da tensão com Washington, Pequim determinou um prazo de 72 horas para o fechamento do consulado dos EUA na cidade localizada no sudoeste do país (veja arte). A medida foi em resposta à desativação do consulado chinês em Houston, anunciada na última terça-feira. “A manobra dos EUA violou seriamente o direito internacional, as normas básicas internacionais e os termos da Convenção Consular China-Estados Unidos. Isso prejudicou gravemente as relações sino-americanas”, afirmou o Ministério das Relações Exteriores chinês, por meio de um comunicado divulgado pela agência estatal de notícias Xinhua. “A medida tomada pela China é uma resposta legítima e necessária ao ato injustificado dos Estados Unidos. Está em conformidade com o direito internacional, as normas básicas das relações internacionais e as práticas diplomáticas costumeiras”, acrescentou a nota.

Ainda de acordo com a chancelaria chinesa, a atual situação nas relações entre China e EUA “não é o que Pequim deseja ver, e os Estados Unidos são responsáveis por isso”. “Mais uma vez, exortamos os EUA a revogarem imediatamente a decisão e a criar as condições necessárias para que o relacionamento bilateral retorne aos trilhos”, diz o texto. Até o fechamento desta edição, o presidente chinês, Xi Jinping, não tinha se pronunciado sobre o tema.

“Chengdu é uma janela para a província Xinjiang e a região autônoma do Tibete. O fechamento do consulado norte-americano afetará a habilidade dos EUA de reportarem sobre as violações dos direitos humanos entre as minorias étnicas”, explicou ao Correio Bonnie Glaser, conselheira para a Ásia e diretora do Projeto Poder da China do Centro de Estudos Internacionais e Estratégicos, em Washington. Organizações não governamentais acusam o Partido Comunista Chinês (PCC) de usar campos de trabalho forçados para confinar até 1 milhão de uigures, muçulmanos. Segundo Glaser, Chengdu também se localiza perto da plataforma de lançamentos espaciais de Xichang.

Para Julian Gewirtz, especialista em política e história da China pela Universidade de Harvard, o fechamento do consulado norte-americano em Chengdu é um fato lamentável, porém, aguardado. “Chengdu é um local importante, mas a desativação da representação diplomática não terá impacto tão grave quanto se o consulado escolhido ficasse em Hong Kong ou em Xangai”, admitiu ao Correio. Ele disse ainda não ter compreendido a lógica do governo Trump em relação ao consulado em Houston, embora tenham sido divulgadas informações sobre espionagem. “O incidente tornou-se símbolo mais vívido, e literalmente incendiário, da deterioração dos laços bilaterais entre EUA e China.”

Sob condição de anonimato, uma autoridade americana alegou que o fechamento do consulado em Houston é uma “mensagem” para os diplomatas chineses “interromperem” suas atividades de espionagem industrial. Na manhã de ontem, funcionários da China foram vistos enchendo sacos de lixo para carregá-los em um caminhão de mudanças.

Ex-líder estudantil em Pequim e sobrevivente do massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, Zhou Fengsuo lembra que os chineses foram pegos de surpresa com o fechamento do consulado em Houston. “O que ocorreu hoje (ontem) foi um sinal de reciprocidade. A China enfatizou que foi forçada a fazer isso”, afirmou à reportagem. Zhou explicou que a cidade de Chengdu foi onde Wang Lijun, o mais recente desertor chinês, buscou abrigo, em 2012. “É também onde os EUA se conectam ao Tibete, apesar de não ser comercialmente essencial como Xangai ou Ghangzhou (também chamada de Cantão).”

Fracasso

Em discurso na Biblioteca e Museu Presidencial Richard Nixon, em Yorba Linda (Califórnia), o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, afirmou que os EUA imaginavam que o envolvimento com a China produziria um futuro com uma “promessa brilhante de cortesia e cooperação”. “Mas, hoje — hoje ainda estamos todos usando máscaras e vendo o número de corpos da pandemia aumentar porque o Partido Comunista Chinês (PCC) falhou em suas promessas para o mundo. Estamos lendo todas as manhãs novas manchetes de repressão em Hong Kong e Xinjiang. Estamos vendo estatísticas impressionantes de abusos comerciais dos chineses que custam os empregos de americanos e causam enormes golpes nas economias de toda a América”, disse. “Se quisermos ter um século 21 livre, e não o século chinês dos sonhos de Xi Jinping, o velho paradigma do compromisso cego com a China simplesmente não servirá. Não devemos continuar e não devemos voltar a ele.”

Para o chefe da diplomacia de Washington, Xi acredita em uma ideologia totalitária falida. “Os Estados Unidos não podem mais ignorar as diferenças políticas e ideológicas fundamentais entre nossos países, assim como o PCC nunca as ignorou”, acrescentou Pompeo.

“A medida tomada pela China é uma resposta legítima e necessária ao ato injustificado dos Estados Unidos. Está em conformidade com o direito internacional, as normas básicas das relações internacionais e as práticas diplomáticas costumeiras”
Ministério das Relações Exteriores da China, por meio de comunicado

“Se quisermos ter um século 21 livre, e não o século chinês dos sonhos de Xi Jinping, o velho paradigma do compromisso cego com a China simplesmente não servirá”
Mike Pompeo, secretário de Estado norte-americano

Um agente a serviço dos chineses
Um cidadão de Cingapura declarou-se culpado, ontem, em um tribunal de Washington por utilizar a própria firma de consultoria nos Estados Unidos para coletar informações que repassava aos serviços de inteligência chineses, informou o Departamento de Justiça. Jun Wei Yeo — também conhecido como Dickson Yeo — admitiu ante o juiz que operava ilegalmente como agente estrangeiro. O réu usou “portais de emprego e uma consultoria falsa para atrair americanos que podem ser do interesse do governo chinês”, afirmou o vice-procurador-geral dos EUA, John Demers, por meio de um comunicado. Em outro desdobramento, uma  investigadora chinesa acusada de esconder seus vínculos com o Exército da China para obter um visto americano foi detida depois de se refugiar no consulado de seu país em São Francisco. Juan Tang, especialista em tratamentos contra o câncer pela Universidade da Califórnia, e três pessoas responderão por “fraude de visto” e por “mentirem sobre sua participação nas forças armadas chinesas”.


» Eu acho...
“Muitas companhias americanas têm representação em Chengdu. Por isso, privar os Estados Unidos de um consulado na cidade impactará os interesses de Washington. O consulado em Wuhan não estava em operação; por isso, sua paralisação não surtiria muito efeito.”
Bonnie Glaser, conselheira para a Ásia e diretora do Projeto Poder da China do Centro para Estudos Internacionais e Estratégicos

“Um ponto que me preocupa é que existe pouca interação diplomática normal entre as duas potências mundiais, e as tensões são extremamente altas. Há risco real de nova escalada — seja uma provocação deliberada ou uma escalada não intencional no Pacífico ocidental —, à medida que Trump torna a China o centro de sua campanha à reeleição. Receio que não estamos no ponto mais baixo da tensão.”
Julian Gewirtz, especialista em política e história da China pela Universidade de Harvard

“Os Estados Unidos estão lutando contra a espionagem em seu próprio território norte-americano. É nisso que se baseia todo o imbróglio em torno dos consulados. Não descarto uma escalada perigosa. Estamos em 2020 e as surpresas são a norma.”
Zhou Fengsuo, ex-líder estudantil em Pequim e sobrevivente do massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989
 

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