Correio Braziliense
postado em 31/07/2020 12:26

De Bagdá a Basra, de Kirkuk à Babilônia, os iraquianos são unânimes: a invasão, em 2 de agosto de 1990, e a ocupação concluída em 2 de março do ano seguinte por uma coalizão liderada pelos Estados Unidos, "selaram o início do fim".
"Nos tornamos malditos depois da invasão do Kuwait, não tivemos mais um único dia de tranquilidade", diz Um Sarah, professora aposentada em Bagdá. Ela enumera os motivos: embargo, invasão americana, guerra civil, violência religiosa e ataques jihadistas...
Tudo começou quatro dias depois da entrada das tropas iraquianas no Kuwait. A ONU decretou um embargo do qual os iraquianos só vão sair com outra invasão: a dos americanos ao seu país em 2003.
Durante este bloqueio, o dinar iraquiano, que valia três dólares, se dividiu por 9 mil.
O salário de Khassem Mohammed, professor em Kut (sul), não valia na época mais que o preço de um frango no mercado. Então, em alguns dias, "comíamos até mesmo o feno dos animais", relembra Yasser Saffar, de 44 anos.
Perda de status e corrupção
Sobretudo, continua Mohammed, "o embargo mudou as mentalidades" das pessoas e abriu as portas para a corrupção, hoje endêmica no Iraque, onde os funcionários públicos alegam baixos salários para pedir propinas.
Hisham Mohammed assistiu à perda de status social de seu pai, um rico importador de materiais de construção. "Com o embargo, nenhum produto entrava mais e todo o seu capital, 100 mil dinares, não valia mais nada", relata à AFP este homem de 50 anos, natural de Bagdá.
A classe média desapareceu e outras camadas da população prosperaram: os defensores do "sistema D", que sabem fazer durar até mesmo um pneu furado, fazem o motor funcionar mesmo sem peças de reposição, que vendem a preço de ouro lâmpadas de óleo para as longas horas de cortes de energia elétrica, os que remendavam as roupas pela enésima vez.
O exército perdeu tudo sob as lentes das câmeras do mundo inteiro, que cobriram a operação "Tempestade do Deserto", a primeira guerra transmitida ao vivo.
Sarmad al-Bayati, oficial na época da invasão do Kuwait, viu soldados voltando a pé ao Iraque. E, uma vez no país, "eles faziam pequenos trabalhos durante suas licenças para chegar ao fim do mês".
E enquanto o Iraque mergulhava no marasmo, o Kuwait prosperava.
No emirado, enquanto isso, várias famílias ainda choram seus mortos e desaparecidos, os ex-prisioneiros falam sempre das torturas que sofreram e, no ano passado, corpos encontrados em valas comuns no sul do Iraque foram levados de volta ao Kuwait.
Durante anos, a família de Ahmed Qabazard, uma das figuras da "resistência" kuwaitiana, torturado e depois executado, fez de sua casa, em parte destruída pelos iraquianos, um pequeno museu dos horrores da ocupação.
Hoje, a casa foi reconstruída, mas sua filha, Shuruq, admite à AFP que "ainda lhe custa ter claros os sentimentos a respeito dos iraquianos". Mesmo que, "com o passar do tempo, descobrimos que eles sofreram como nós com a tirania de Saddam Hussein".
Ghida al-Amer diz ter se sentido feliz com a queda do ditador em 2003. Durante a invasão, suas tropas "enforcaram com um fio de eletricidade" sua irmã, que havia preparado explosivos para a "resistência".
Dívidas
Casas destruídas, familiares desaparecidos ou presos, empresas apreendidas: o Kuwait avaliou suas perdas e a ONU apresentou a conta ao Iraque, alvo de sanções da organização até 2010.
Em 30 anos, Bagdá pagou 43,6 bilhões de euros. E o país, que atravessa a pior crise econômica de sua história, ainda deve 3,3 bilhões de euros.
As relações levaram 20 anos para ser restabelecidas. Em 2018, o Kuwait sediou uma conferência para reconstruir o Iraque e foi o primeiro a contribuir, com dois bilhões de dólares.
Mas as divergências permanecem: Bagdá reconheceu a fronteira terrestre demarcada em 1993 pela ONU, mas considera que sua fronteira marítima bloqueia seu acesso ao Golfo, vital para a sua economia. Regularmente, a marinha kuwaitiana detém pescadores iraquianos.
Quanto aos desaparecidos, mil de cada lado, apenas 215 restos mortais de kuwaitianos e 85 de iraquianos foram entregues, segundo a Cruz Vermelha.
"Nós podemos perdoar, mas é impossível esquecer a invasão", diz Shuruq Qabazard. "Foi o evento mais importante de toda a minha geração".
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