Correio Braziliense
postado em 02/08/2020 04:16
Ghanim Alnajjar, professor de ciência política da Universidade do Kuwait, tinha 35 anos quando 100 mil soldados do ditador iraquiano, Saddam Hussein, e 700 tanques invadiram o seu país, às 2h (hora local) de 2 de agosto de 1990. “Foi uma madrugada confusa e difícil de acreditar. Levamos o dia inteiro dirigindo por muitos lugares para ver toda a destruição e os tanques. Era uma forma de crer no que tinha ocorrido”, relatou ao Correio. Durante 240 dias, os poços de petróleo do Kuwait arderam em chamas, depois de serem incendiados pelas forças do país vizinho.
Nos últimos dias da invasão, Ghanim andava de bicicleta quando foi parado por tropas especiais do Iraque. “Acabei preso e levado, com outros kuwaitianos, a uma prisão no norte de Basra (sul do Iraque). Mais de 1,2 mil indivíduos estavam nesse local. Não sofri tortura grave, mas as condições eram extremamente ruins, com superlotação, sem banheiro e com alimentação bastante limitada”, lembra. Para ele, a grave crise econômica, depois de oito anos da guerra contra o Irã (1980-1988), levou Saddam a pressionar o Kuwait a fornecer US$ 10 bilhões, sob o argumento de que o país produzia petróleo em excesso, afetando os preços. “Ele invadiu o Iraque depois de não ter resposta às suas demandas.”
Trinta anos depois da ocupação, Nasser Riden Al Motairi (leia Depoimento), embaixador do Kuwait em Brasília, explicou ao Correio que as relações bilaterais foram retomadas em 2004, com a visita do então premiê iraquiano, Ayad Allawi, ao Kuwait. Seis anos depois, o primeiro-ministro kuwaitiano, xeque Nasser al-Sabah, viajou a Bagdá — a primeira visita de uma autoridade de alto nível do Kuwait desde a invasão de 1990. “Houve impacto positivo no fim da tensão entre os dois países e na abertura de uma nova página nas relações bilaterais”, afirmou o diplomata.
Segundo Al Motairi, as lideranças de ambos países tomaram medidas ativas para virar a página do passado e começar uma nova etapa, marcada pela cooperação frutífera e pela resolução de problemas pendentes, por meio da coordenação, da consulta e de visitas de alto nível. A mais importante delas envolveu a ida de Sabah al-Ahmad al-Jaber al-Sabah, emir do estado do Kuwait, ao Iraque, em junho de 2018. “A política do Kuwait pós-invasão foi baseada em vários princípios, partindo das relações legítimas do Conselho de Segurança, da boa vizinhança e dos valores humanitários”, comentou.
O embaixador lembra que, desde 2003, o Kuwait presta assistência financeira ao povo iraquiano, bem como auxílio para aliviar o sofrimento dos deslocados iraquianos. Em fevereiro de 2018, o país sediou uma conferência internacional para a reconstrução de áreas libertadas do Estado Islâmico (EI) no Iraque. Nos últimos meses, o Kuwait também enviou dinheiro a Bagdá para o combate ao novo coronavírus.
Ministro da Habitação do Kuwait à época da invasão e ex-superintendente-geral da Companhia de Petróleo do Kuwait, Yahya Fahed Al-Sumait teve de abandonar a família, quando as tropas de Saddam cruzaram a fronteira, e foi transferido, com outros dois ministros (da Saúde e do Petróleo), para a Arábia Saudita. Muitos moradores do Kuwait não sabiam o que estava ocorrendo, e o governo entregou cinco celulares contrabandeados a grupos de resistência, formados por membros do exército e do Ministério do Interior. “As forças de resistência conseguiram um caminhão-pipa e envenenaram a água. Um regime iraquiano confiscou o veículo e intoxicou, inadvertidamente, os próprios soldados”, contou Yahya ao Correio.
Interrupção
Ele admite que a ofensiva iraquiana provocou uma “enorme interrupção” no desenvolvimento econômico, político e cultural do Kuwait. “Levou mais de uma década para nos recuperarmos, embora o trauma coletivo entre as gerações mais antigas permaneça”, disse. A invasão ainda é vista como tabu entre muitos kuwaitianos. “Há pouco diálogo público sobre a invasão e sobre suas consequências. O Kuwait não aprendeu as lições dessa experiência. O país tem divisões sociais (nômades versus urbanos, xiitas versus sunitas) que não eram tão predominantes no momento em que as pessoas se uniram para responder à incursão de Saddam.”
A aventura militar do ditador iraquiano teve reflexos em todo o Oriente Médio. Segundo Yahya, alianças tradicionais foram impactadas. “A invasão acrescentou insegurança considerável à região, criou enormes problemas de refugiados e fortaleceu bastante a influência do Irã”, afirmou. “Há uma violência duradoura no Iraque e um progresso político tênue, desde que o sistema consocialista estabeleceu divisões políticas arraigadas ao longo de linhas sectárias e étnicas. Apesar dos terríveis problemas do Iraque de Saddam, os serviços básicos e a segurança funcionavam melhores do que hoje.”
O ex-ministro acha difícil de compreender a mentalidade de um ditador como Saddam, bem como os motivos que o levaram à guerra. “Algumas das razões para a invasão incluem a oportunidade de ganhos econômicos e a falsa impressão de impasse político entre o governo kuwaitiano e as forças da oposição”, citou. Ele lembra ainda que Saddam considerava a posse sobre o Kuwait um direito histórico de Bagdá, por crer que o país vizinho foi uma província de Basra (sul do Iraque) durante o Império Otomano. “Saddam pretendia expandir o seu legado histórico. Também calculou mal a disposição dos EUA e da comunidade internacional de ingressarem em um conflito.” Saddam resistiu à campanha de bombardeios da coalizão durante a Primeira Guerra do Iraque (2 de agosto de 1990 a 28 de fevereiro de 1991), mas foi capturado, julgado e morto na forca em 30 de dezembro de 2006, em meio à Segunda Guerra do Iraque (2003-2011).
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