Opinião

A vitivinicultura e a história ambiental global

postado em 10/06/2019 04:05

Embora a vitivinicultura apareça como tema recorrente em diversas áreas do conhecimento de países europeus, no Brasil as pesquisas ainda são incipientes. Nas últimas décadas, o crescimento da produção e do consumo de uvas e vinhos vem conferindo especial importância ao setor.

Notando esse dinamismo e suas implicações socioambientais, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) tem sido pioneira nos estudos sobre o tema. Com o projeto Da terra à mesa: uma história ambiental da vitivinicultura nas Américas, a UFSC e o CNPq contam com parcerias internacionais para desbravar a história da introdução e adaptação dos vinhedos no Novo Mundo. O objetivo é compreender os processos históricos da interação entre sociedades, espaços geográficos e espécies viníferas sob a perspectiva da história ambiental global.

O campo de pesquisa da história ambiental busca compreender de forma crítica a relação entre a cultura humana e o ambiente físico. De acordo com Donald Worster, um dos precursores dos estudos histórico-ambientais, a história ambiental ajuda a ;aprofundar o nosso entendimento de como os seres humanos foram, através dos tempos, afetados pelo ambiente natural e, inversamente, como eles afetaram esse ambiente e com que resultados;. Nesse sentido, os estudos nos apresentam o ambiente como fator ativo, visto que as pessoas organizam e reorganizam a vida relacionando-se com o meio natural.

Nos processos de migração, domesticação e disseminação de espécies, as videiras (plantas trepadeiras do gênero Vitis) e os seres humanos modernos (Homo sapiens) são exemplos da interação ocorrida entre seres vivos. O vinho, bebida produzida a partir da fermentação da uva, surgiu há cerca de 7 mil anos na região do Cáucaso, na Ásia Menor. Através das migrações e trocas comerciais entre os povos, o vinho ganhou destaque em culturas como o Antigo Egito, Fenícia, Grécia e Roma, chegando até nós, sobretudo, graças à importância da bebida na mitologia judaico-cristã.

No século 20, o vinho tornou-se uma commodity de estratégica relevância econômica e social. O interesse é justificado pela milenar importância simbólica e cultural, bem como, notadamente, o alto valor agregado. Para muitas culturas, o vinho é considerado alimento. Além disso, pesquisas têm demonstrado aspectos positivos do consumo moderado para a saúde, relacionando a bebida com a prevenção de doenças, a longevidade e melhor qualidade de vida.

No Brasil, a produção de uva e vinho tornou-se negócio expressivo com a imigração italiana, pesquisas tecnocientíficas e incentivos governamentais. No século 20, a produção vitícola teve impulso com a importação de variedades europeias, americanas e híbridas introduzidas nas áreas de colonização italiana do país, como a Serra Gaúcha e o sul de Santa Catarina. Em consequência do crescimento do mercado consumidor, a partir da década de 1970 verifica-se a modernização da vitivinicultura. Entre as principais regiões produtoras, destacam-se a Serra e a Campanha Gaúcha, o Vale do Rio São Francisco, o norte do Paraná, o noroeste de São Paulo e o norte de Minas Gerais.

A mais recente fronteira vitivinícola de Santa Catarina é a região de altitude do Planalto Serrano. Em seus vinhedos predominam variedades Vitis vinífera, para produção exclusiva de vinhos finos, plantadas entre 900 e 1.400 metros de altitude. Diferente das regiões tradicionais, onde a vitivinicultura se desenvolveu em função da imigração italiana, no planalto catarinense foi baseada em pesquisas científicas, investimento de empreendedores e apoio técnico especializado.

Até a implantação de vinhedos no final do século 20, a região do planalto catarinense tinha na agropecuária e no extrativismo vegetal as principais atividades econômicas. Se compararmos com o Rio Grande do Sul, em Santa Catarina a produção de vinhos finos teve um despontar mais tardio. Percebendo o diferencial das condições edafoclimáticas da região, a partir da década de 1970 o governo de Santa Catarina passou a apoiar iniciativas para o cultivo de espécies de clima temperado, como as videiras, por meio do Programa de Fruticultura de Clima Temperado (Profit). Embora o Profit tenha contribuído para o interesse dos produtores no cultivo de variedades europeias, foi na década de 1990 e 2000 que o cultivo dessas variedades foi impulsionado pelo incentivo governamental e investimentos privados.

A paisagem bucólica dos vinhedos é o principal elemento que os turistas associam ao vinho. Desse modo, transformações espaciais que levem à descaracterização dessa paisagem vitícola poderão ocasionar a perda da representação simbólica para os moradores locais, turistas e consumidores dos seus vinhos alhures. Podemos inferir a necessidade simbólica e mercadológica da preservação dos remanescentes dos campos nativos e das florestas de araucárias, bem como a harmonia espacial e ambiental entre os cultivares exóticos (videiras) e os seres vivos nativos da região (fauna e flora).

Tratando-se de terroirs recentíssimos no mundo do vinho, o Brasil precisa (re)conhecer seu passado de ocupação e usos da terra, para compreender a importância atual e futura dos recursos naturais e vislumbrar a sustentabilidade nesses espaços através, quiçá, do enoturismo.

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