O Código de Trânsito Brasileiro precisa de revisão. Com 22 anos, envelheceu precocemente e pede mudanças. No Congresso Nacional, há centenas de propostas de alterações, muitas cosméticas, que vagam de comissão em comissão, ou descansam numa gaveta à espera de acordos.
As razões para as mudanças são várias. A primeira é que a pirâmide dos pontos está invertida. Das mais de 250 infrações previstas, dois terços são gravíssimas e graves, 26% médias e apenas 8%, leves. Ora, nos códigos de trânsito mundo afora, as infrações gravíssimas são minoria, apenas as que realmente têm alto poder ofensivo e colocam a segurança em risco. No nosso, há infrações gravíssimas que nem sequer poderiam ser consideradas infrações de trânsito. Por exemplo, o art. 242 preconiza que é infração gravíssima ;fazer falsa declaração de domicílio para fins de registro, licenciamento ou habilitação;. Ora, essa é apenas uma questão administrativa ou, eventualmente, falsidade ideológica, não uma infração de trânsito.
Outra razão é que parte do código se mostrou inaplicável em diversas áreas. Em um país diverso como o Brasil, a aplicação das regras pode não funcionar a contento. O que vale na cidade de São Paulo é muitas vezes inaplicável em pequenas cidades. Por seu lado, o próprio Estado não consegue cumprir suas obrigações. O art. 88 preconiza que nenhuma via pode ser entregue ao público antes de ser devidamente sinalizada e em condições adequadas de circulação e segurança. Convenha, a realidade é completamente diferente.
O presidente Bolsonaro levou pessoalmente ao Congresso Nacional uma proposta de projeto de lei (PL 3.267/19) para alterar o Código de Trânsito Brasileiro. A intenção é que seja uma mexida grande e significativa. A proposta quer alterar 16, e incluir dois novos artigos e revogar integral ou parcialmente oito. Algumas alterações dizem respeito a aspectos administrativos ou burocráticos, porém cinco pontos vão interferir na vida dos cidadãos e na segurança viária: validade da carteira, exame toxicológico, lei dos faróis, transporte de crianças e número de pontos para suspensão da habilitação.
Considero os três primeiros razoáveis, mas os dois últimos, questionáveis. O aumento de cinco para 10 anos da validade da habilitação até o condutor completar 65 anos deverá ter impacto pequeno na segurança de trânsito. No entanto, exames mais frequentes e completos a partir dessa idade poderão detectar com mais precisão perda de habilidades comuns ao envelhecimento.
O projeto de lei propõe também a eliminação do exame toxicológico. A Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) é contra o exame por considerá-lo ineficaz, ilegal e caro, sem impacto na segurança viária. Para a segurança, o que importa é que o motorista não dirija sob efeito de droga, o que esse exame não é capaz de afirmar. A Lei 13.290/16, que obriga manter faróis baixos ligados durante o dia em rodovias, será revogada. Prevê-se a obrigatoriedade durante o dia apenas em rodovias de pista simples, e a inobservância passa a ser infração leve.
No caso do transporte de crianças fora das normas de segurança, atualmente infração gravíssima, o novo projeto mantém a obrigatoriedade, mas, no caso de descumprimento, o condutor receberá apenas uma advertência por escrito. Por que afrouxar normas de segurança se convivemos com uma situação grave exatamente por falta da observância dessas normas? Seria correto eliminar a penalidade para os pais que insistem em um transporte arriscado? Sabemos que 40% das mortes de crianças com menos de 10 anos ocorre no interior dos veículos e por falta de acomodação adequada em cadeirinha ou bebê-conforto. Os pais têm de ser necessariamente responsabilizados, pois as crianças não têm condição de avaliar e prover sua própria segurança.
Finalmente o governo propõe aumentar de 20 para 40 pontos o limite de pontos para suspensão do direito de dirigir. O argumento é que hoje é muito fácil atingir 20 pontos. E é mesmo. No Brasil todas as infrações contam pontos. Em muitos países, só infrações que têm risco para a segurança pontuam. Poderíamos fazer o mesmo por aqui.
O Código de Trânsito necessita de atualização, mas o novo projeto não muda o que é necessário, como estabelecimento de maior equilíbrio, que reconheça a diversidade e as limitações da situação. E, pior, sinaliza com mais impunidade quando já temos excesso de violência. Temos 45 mil mortos e 1 milhão de feridos no trânsito por ano. Quantos foram responsabilizados e presos? Falar em aumento da tolerância é, no mínimo, condescender com a irresponsabilidade, a negligência e a tragédia.